PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 27 de Fevereiro de 2005

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2004-2005

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2004/2005

 

PROVA Nº 6

 

UM CASO INSÓLITO

Autor: Rip Kirby

 

Evaristo Relvas era um indivíduo enfezado, não teria mais de 1,55m de estatura e a sua largura de ombros dificilmente chegava aos 35cm. O peito em forma de quilha fazia lembrar o peito das galinhas. Talvez por isso, não chegou a cumprir o serviço militar, muito embora, no tempo em que para isso ele tinha idade, terem sido raros aqueles que escaparam de serem considerados aptos para irem bater com os costados em qualquer uma das nossas colónias de então onde havia guerra.

Não obstante os seus fracos atributos físicos, o Evaristo gozava de grande êxito entre as mulheres o que desde logo fazia com que nós, os que com ele se davam mais intimamente, evitássemos a sua companhia em determinadas ocasiões para não sermos relegados para segundo plano.

Em 1970, ou teria sido em 1972, já não me lembro bem, tinha ele então 30 anos, o pai faleceu e deixou-lhe dois ou três viveiros de amêijoas e um pequeno negócio de marisco sem grandes pretensões.

Durante alguns anos, nas mãos dele, o negócio estagnou sem aparentar progresso algum – nem ele, um tipo pouco afoito para os negócios, era pessoa para grandes voos. Em 1990, mais coisa menos coisa, quase que de um dia para o outro, Evaristo Relvas viu-se alcandorado à categoria de grande importador e exportador de mariscos.

Ninguém sabia como ele tinha conseguido tal êxito nos negócios. Várias foram as hipóteses então aventadas. Uns diziam que ele havia sido contemplado com um chorudo prémio da lotaria ou totoloto. Outros, por certo os mais mal-intencionados, não tinham dúvidas em afirmar que aquele progresso, tão grande e súbito, mais não era que o fruto do tráfico de droga.

Se uns ou outros tinham razão, não sei, pois a única coisa de que tenho a certeza é que as modestas instalações onde havia nascido a pequena empresa que o pai lhe havia deixado por herança foram abandonadas e o centro nevrálgico dos negócios do Evaristo foi transferido para um moderno edifício onde tudo era sumptuoso e onde ele atendia os seus clientes, que, para chegarem até ele, tinham que, antes, passar por uma eficiente e decorativa secretária, que aquilatava a importância do assunto que cada um dos eventuais visitantes pretendia tratar.

Diziam as línguas viperinas que as funções da secretária por vezes eram bastante mais íntimas do que aquelas atrás referidas, o que já por diversas vezes provocara alguns atritos violentos entre o marido e o patrão dela.

Uma manhã, cerca de dois anos após o início da sua nova situação económica, a polícia foi chamada ao escritório de Evaristo Relvas. A secretária havia-o encontrado morto no gabinete.

Faltavam poucos minutos para as 12h00 quando o inspector Eduardo Trindade ali chegou acompanhado pelo sargento Silveira, sendo ambos recebidos por Etelvina Fernandes, a secretária, que os pôs ao corrente do que sabia:

– O patrão tinha chegado ao escritório poucos minutos depois das 9h00. Vinha acompanhado pelo filho e ambos entraram imediatamente para o gabinete do Evaristo. Armando Relvas voltou a sair às 9h15 e parecia muito zangado (as discussões entre pai e filho eram muito frequentes). Até ao momento ainda não tinha regressado. Às 9h20 entrou Ernesto Fernandes. Vinha tratar da venda de umas centenas de quilos de conquilhas que havia apanhado na noite anterior e tentar receber uma factura referente a umas amêijoas que estavam por pagar havia mais de um mês, e cuja demora no pagamento já havia provocado algumas disputas verbais entre os dois. Pelo jeito, naquele dia, o Ernesto alcançara o seu objectivo, pois ao sair, 20 minutos mais tarde, vinha bastante risonho e mostrara-lhe um cheque, dizendo: “Já cá canta, não era sem tempo.”

– Às 11h30 entrou Manuel Mateus, um operário que o Evaristo mandara chamar para lhe comunicar a sua decisão de o despedir devido ao facto de, no seu serviço, ter actuado com negligência de que resultaram algumas centenas de contos de prejuízos. Mas não demorou nem um minuto, saiu correndo e levava no rosto uma expressão bastante alterada. Eram 11h45 quando entrei no gabinete para levar um café ao patrão, como é costume fazer todos os dias, e fui encontrá-lo morto.

Eduardo Trindade e o seu ajudante entraram no gabinete. Era uma sala ampla aparentemente quadrada, talvez 10mx10m. O corpo de Evaristo Relvas encontrava-se caído no solo de bruços, junto de uma janela no lado direito da sala. A cabeça, virada para a direita, deixava ver a cavidade do olho desse lado que havia sido vazado. Tinha sido por ali que a morte entrara, deixando um ferimento de muito mau aspecto. A mão direita estava pousada sobre uma pequena pistola e espalhadas pelo chão havia diversas cápsulas de bala.

O gabinete apresentava-se recheado de móveis caros, mas que não condiziam uns com os outros, revelando por isso um mau gosto gritante. No entanto, o que mais chamou a atenção do inspector foi uma espécie de vitrina com cerca de um metro de altura colocada no lado esquerdo da sala, mesmo em frente ao lugar onde se encontrava o cadáver. Verticalmente colocada sobre esta vitrina estava uma placa quadrada, 80cmx80cm, de madeira prensada, que tinha colado no centro um alvo que apresentava algumas perfurações, o que também acontecia fora do perímetro do alvo, em muito maior quantidade. Ladeando esta placa, encontravam-se duas estatuetas de bronze maciço que representavam figuras míticas seminuas da antiga Grécia.

A propósito destas duas estatuetas apetece-me relatar um curioso diálogo travado entre o Silveira e o Inspector. Andava o sargento cirandando pela sala e, parando junto da vitrina, entreteve-se a examinar as duas figuras quando, apontando para a sua direita, exclamou:

– Os tipos que fizeram estes bonecos colocaram dois umbigos neste!

– Homem, não seja parvo, deixe-se de tolices e faça qualquer coisa de útil. Há tanto tempo que anda nisto e, no entanto, parece que continua lá nas brenhas da serra onde nasceu. Pensa que eu tenho tempo para brincadeiras? – respondeu-lhe o inspector mal-humorado. E continuou como se estivesse pensando em voz alta:

– O ferimento não se mostra chamuscado nem existem resíduos de pólvora ao seu redor.

Foi neste momento que chegou o médico-legista, que, após um exame relativamente rápido, declarou de forma lacónica:

 – Morte instantânea, que terá ocorrido há mais de uma hora e menos de duas. A bala entrou pelo olho direito e alojou-se no cérebro. Mais informações só depois da autópsia. Agora tenho que me ir embora, são 12h30 e tenho a minha mulher à espera para almoçar.

Aguardou um pouco mais para assistir à remoção do corpo e saiu.

Sempre acompanhado por Silveira, o inspector saiu do gabinete e dirigindo-se a Etelvina Fernandes – a sua mesa de trabalho estava colocada a pouco mais de dois metros da porta onde ocorrera a tragédia, de modo que quem entrava ou saía tinha que passar por ela –, perguntou-lhe se tinha estado sempre ali e se não tinha escutado o tiro.

– Não senhor, não saí do meu lugar e quanto ao tiro não ouvi porque a sala se encontra insonorizada. Além disso, mesmo que tivesse escutado o tiro pensaria que era o senhor Evaristo a treinar-se.

– O Evaristo a treinar-se? Conte lá isso…

– Há umas semanas atrás, o senhor Evaristo disse-me que ia comprar uma arma, pois não se podia andar descansado na rua e há coisa de uma semana apareceu aí com uma pistola. Para se treinar, mandou fazer o alvo que tem no gabinete, mas eu penso que ele não progrediu nada. Julgo mesmo que ele não sabia lidar muito bem com a arma, pois às vezes pedia a minha opinião. Chegou mesmo a dizer que nunca tinha pegado num objecto daqueles.

Eduardo Trindade afastou-se um pouco com o sargento, recomendando-lhe que fosse recolher os depoimentos dos indivíduos que haviam estado no gabinete de Evaristo Relvas. Algumas horas mais tarde, o inspector lia o relatório que o sargento Silveira lhe apresentara.

Manuel Mateus declarou que havia sido chamado ao escritório pelo patrão, mas que mal entrou a porta o viu estendido no chão. Aquele buraco horrível na cabeça agoniara-o de tal maneira que saiu correndo. Jurava que não havia sido ele quem matara o patrão.

Armando Relvas, filho de Evaristo, fez as suas declarações cerca das 13h30 enquanto almoçava num restaurante um pouco afastado e onde era cliente habitual. Afirmou que havia chegado à empresa com o pai, tendo saído pouco depois para tratar de um assunto de que o seu progenitor o havia encarregado. Saíra um pouco zangado, pois naquele dia não estava interessado em afastar-se para muito longe do seu local de trabalho. Regressara há poucos minutos e ainda não voltara a falar com o pai. Mostrara-se curioso por aquele interrogatório, mas o sargento nada lhe disse. Recomendou-lhe apenas que fosse para casa.

Ernesto Fernandes foi abordado quando tomava uma bica, cerca das 14h30, num café perto de sua casa. Quando o sargento se identificou, perguntou-lhe se já sabiam quem tinha assassinado o maroto do Evaristo. Tinha ido lá para tratar de negócios. Quando isso acontecia, quase sempre saía de lá chateado porque o outro era muito lampeiro a exigir pontualidade mas estava-se nas tintas quando esta lhe era exigida. Naquele dia não tivera muita razão de queixa pois o Evaristo finalmente pagara-lhe a factura que tinha para receber, havia mais de um mês. Fora logo ao banco depositar o cheque e depois foi procurar vender umas conquilhas que tinha apanhado, uma vez que o Evaristo as não quisera comprar. Havia sido a vingança por se ver obrigado a pagar a factura atrasada. Tinha destas coisas, o malandro. Quando terminou o negócio, foi almoçar com a mulher num restaurante perto de casa e agora estava ali fazendo horas para ir para a lida.

Eduardo Trindade obteve outras informações, de entre as quais destaco as seguintes: a pistola encontrada junto do corpo do Evaristo era mesmo dele e a bala que lhe foi extraída da cabeça, apesar de muito danificada, não havia dúvida que fora disparada por essa mesma arma, onde não foram encontradas impressões digitais além das suas.

Estes factos aconteceram há já alguns anos, mas embora eu me lembre de tudo isto pormenorizadamente, não consigo recordar-me de qual foi o seu desfecho.

Será que os meus amigos, juntando todos estes dados, são capazes de reavivar a minha memória?

Agradeço que os interessados em me ajudar elaborem um relatório o mais completo possível.

A propósito, o Ernesto Fernandes era casado com a secretária do Evaristo Relvas.

A todos desde já os meus agradecimentos pela trabalheira.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO