PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 5 de Junho de 2005

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2004-2005

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2004/2005

 

PROVA Nº 9

 

ASSÉDIO, BOMBONS E CRIME

Autor: Severina

 

Na penúltima quinta-feira, antes do Ano Novo, António Ruas, ex-oficial da Marinha Mercante, estava morto no seu escritório.

Após uns dias de folga, Palmira, empregada na casa, voltava ao local de trabalho, a meio da manhã, quando encontrou a rua e o passeio todo molhado. No dia anterior, na via pública rebentara um colector que alagara todo o passeio do lado da vivenda. Palmira entrou pela passagem lateral do edifício, à esquerda, usando a porta de serviço. Esta porta estava encostada.

O que nunca acontecera…                

Já na vivenda, notou a luz acesa na sala de estar, esbatida pela claridade do dia, através das vidraças com os reposteiros abertos. De regresso a casa, chegava João António – afilhado de António Ruas – pela porta principal, limpando os pés. Assim, o afilhado e a empregada deparam com o dono da casa morto. João António, depois de observar o padrinho, chamou a polícia, fechou o aquecimento e recomendou à empregada que não tocasse em nada. Alguém matara o Comandante; não se podia fazer mais nada.

Comovida, Palmira recordou a patroa morta, dez anos antes… João António, afilhado do casal Ruas, recebido e educado em casa do comandante desde que perdera os pais, em criança, não deixou de lembrar a madrinha. Fora sempre tratado como filho pelos padrinhos!

A velha, mas bem conservada vivenda do comandante Ruas, construída pelos seus pais, é uma residência confortável, inteiramente alcatifada. Situa-se num bairro antigo da capital, numa rua estreita e sinuosa que desce desde o alto da colina. O agente Prazeres e o seu parceiro, enviados para investigar o caso, apareceram à porta da vivenda a meio da tarde. Entraram com a máxima cautela, por notarem no piso do átrio uma leve camada de lama ressequida, à entrada da porta. Deixada por calçado húmido.

Da única porta da divisão, onde estava o corpo, que a ligava ao interior da residência – divisão misto de escritório e sala de estar –, os agentes viram a posição do corpo, abarcaram o ambiente; tendo em frente as duas janelas francesas, bem fechadas, viradas ao pequeno jardim nas traseiras, protegido por um alto muro. A ampla sala continha um contador indo-português e outros pequenos móveis também de estilo. Entre as janelas, banhada pela claridade, uma sólida escrivaninha e a cadeira com rodízios. Havia o bar, com garrafas e copos sobre o balcão, e pires de aperitivos próprios sobre mesinhas. Um leve enfeite natalício, perto do jogo de maples, lembrava o Natal. O cadáver estava no sofá.

Quando a equipa de recolha de dados e os fotógrafos saíram, Prazeres inteirou-se do que fora achado. Pôde ver de perto o orifício por onde entrara a bala; e, por onde saíra, o sangue que ensopara na alcatifa. O corpo do comandante – deitado sobre o espaldar do sofá, de costas para a janela, ficara com uma fotografia na mão direita; o braço esquerdo, descontraído, caía à vontade por sobre este lado do corpo, com a mão abandonada sobre a perna. Viu a marca de giz, no chão, onde estivera o revólver (que parecia lhe ter caído da mão), e perto a indicação onde se achara uma cápsula de bala de calibre 22 mm. Sobre a escrivaninha, os apetrechos costumados a um uso continuado, num local de escrita, com um telefone à direita. A cadeira giratória fora afastada e a segunda gaveta estava mal fechada. À volta, o desarrumo próprio de uma reunião de homens.

À primeira vista, o médico calculou a hora da morte entre as 15h00 e as 21h00 do dia anterior. Sem muita certeza devido ao aquecimento da divisão. O resto, só depois da autópsia. O corpo havia muito que entrara em rigor mortis…

Prazeres quis ouvir as primeiras declarações da empregada e pormenores da morte de D. Julieta Ruas. Depois ouviria João António.

Palmira fora numa viagem, ao sul de Espanha, no fim-de-semana anterior. E ficara até quinta-feira de manhã, em casa de familiares. Assustara-se com a porta encostada, por nunca ter acontecido e se estar no período entre “desde o penúltimo fim-de-semana do ano até à véspera do Natal”, em que a vivenda ficava uma semana fechada. Nestes dias, ainda do tempo de D. Julieta, o senhor comandante ia para um hotel da Linha de Cascais, onde festejava o seu aniversário natalício – no dia mais pequeno do ano –, na companhia de hóspedes e amigos. Às vezes, o patrão vinha a Lisboa, até dormia uma noite. Mas as portas ficavam fechadas…

Quando da morte da senhora, por esta altura, o patrão andava em viagem: voltaria pouco depois. Já instalada no hotel, a senhora foi a uma festa de despedida de alguém que ia para fora do país. Festa onde perdera uma pulseira dada pelo marido em data especial. Inesperadamente, chegou à vivenda, já tarde, quando Palmira ultimava o serviço para entrar na sua folga habitual, de fim do ano. Não vinha bem. Dizia-se levemente tonta, queixou-se de mau gosto na boca deixado por uma bebida. Ela nunca bebia… Trazia uma caixa de bombons com licor, oferecida para tirar o mau gosto, mas não teve efeito. Aceitou uma chávena de chá, deu dois bombons à empregada e foi para o quarto. “Depois de dormir, fico boa!” – garantiu. Poucos bombons ficaram na caixa, iguais aos que a empregada comeu, que não tinham nada de mal. Preocupada, Palmira, deixou-a a dormir e voltou na manhã seguinte. Estava morta; morrera durante a noite. Deu com ela sem vida, como deu agora com o patrão…

João António, aluno da Escola Náutica, em férias escolares, foi até à Serra da Estrela. Terça-feira, ainda estava na Torre; depois do almoço falou com o padrinho. Este, animado, disse-lhe que comprara outra peça antiga. Ia recebê-la a Lisboa, antes de acabar a estada no hotel. Convidara o Moreira e o Amaro, para irem; talvez fosse mais alguém… Quis saber da fotografia da dedicatória galante: “à doce ‘Julieta’ do seu ‘Romeu’“; que por acaso foi achada junto de uma foto da madrinha, num quadro com o retrato dela que caiu da parede. A João António não agradou que o padrinho voltasse a falar nesse caso infeliz, que tanto o desgostara. O retrato estava junto ao Colt de 32 mm, numa das gavetas da escrivaninha, ao lado das chaves do contador onde guardava os tesouros trazidos das suas viagens – que gostava de mostrar; gaveta em que só mexia de longe em longe. Findas as declarações, João António quis mostrar o retrato ao agente. Mas o retrato já não estava onde estivera durante anos. E o Colt desaparecera!

Os visitantes do comandante prestaram-se a ser inquiridos: embora nem todos tivessem estado juntos até ao fim… Falou Júlio Moreira, que conhecera D. Julieta, e vinha a casa do Ruas sempre que tinha convite. Depois Fernando Amaro, que fizera grandes viagens com António Ruas, mas não lhe conhecera a esposa. Tinha sido uma curta reunião, mas muito agradável.

Outro dos visitantes foi Graciano Pinheiro, antiquário. Viajava muito. A sua convivência com Ruas começara por um negócio bem sucedido. Só recentemente passara a frequentar o grupo.

Também estivera presente Alcides Bernardo, fazendeiro português radicado no Brasil. Aproveitara a sua anual visita de negócios, a Espanha, e esteve durante o Verão em Portugal – devido ao ambiente de euforia que se vivia no país. Agora, tendo os seus assuntos tratados, de regresso ao Brasil estava neste hotel porque o conhecera antes de sair de Portugal. Aceitara o convite do comandante por curiosidade.

Júlio Moreira disse da simplicidade da reunião. Logo no início, após se juntarem na sala, Graciano viera apenas para cumprir a entrega de um objecto antigo. Saiu logo, devido a um compromisso. Ruas, cercado dos restantes três convidados, abriu o pacote e mostrou um pequeno porta-moedas, de 8,8 por 5,5 centímetros, tendo dois compartimentos dentro. Peça bem feminina, revestida no verso e reverso por marfim – numa face tinha esculpido um raminho de flores, em relevo, dentro duma graciosa moldura oval. Ao recolher a peça, enquanto conversava, retirou, da parte de trás da gaveta da escrivaninha, a chave do contador, que abriu de seguida para mostrar a valiosa jóia que ele conseguira recuperar. A mesma que a esposa tinha perdido antes de falecer. Queria muito achá-la, e comprou-a logo que a viu à venda no catálogo de um comerciante. Foi só questão de preço… Mostrou o retrato de D. Julieta, a quem não a conhecia, e contou os seus últimos momentos. Não ia esquecer que o seu fim não fora por acidente ou suicídio!...

Nessa altura, Alcides Bernardo, sentira-se mal. “Foi o drink!“, disse. Ainda foi à casa de banho, mas foi o segundo convidado a sair. Os outros dois ainda ficaram, acompanhando o amigo, até lhes parecer que este gostaria de ficar com as recordações. Saíram juntos quando a tarde caía, cada um para o seu transporte. Graciano Pinheiro e Alcides Bernardo, contactados pelo agente Prazeres, confirmaram as declarações de Júlio Moreira: não estavam presentes!

A autópsia confirmou a morte imediata do Comandante – que fazia o resto da digestão da última refeição sólida e tomara uma bebida alcoólica – causada por um tiro de pistola, disparada quase à queima-roupa, que atravessou o crânio. O revólver caído no chão estava oleado e carregado, tinha as impressões digitais de António Ruas, mas não foi disparado. Na mão do cadáver não se acharam resíduos de pólvora. A cápsula encontrada perto do revólver era do mesmo calibre da bala assassina. Não ficaram dedadas na cápsula nem se encontrou essa arma.

Os relevos possíveis fotografados no piso do átrio, revelaram entradas e saídas, estas sobrepondo a outras, deixadas devido ao passeio alagado. Concluiu-se que a última pessoa a entrar na moradia foi João António: reconhecido pelo quase esbatido desenho, da sola de borracha do calçado, que ainda usava quinta-feira à tarde. No sentido da saída, havia outra pegada, difícil de moldar, cujo rasto estava logo abaixo da pegada de João António – com o pé maior que este. Molde, no entanto, que assentou perfeitamente na marca de uma pegada – conseguida, já na alcatifa, no interior da porta de serviço – em que a orla de um sapato de sola de borracha, lisa e humedecida, ficou delineada no sentido de quem entra. Leve vestígio que, por sorte, ficou fora das passadas de Palmira…                                                                                           

As impressões digitais recolhidas no escritório, são do comandante e dos seus convidados, como é natural; resumindo-se, por enquanto, a isso. 

Na tarde fria, da véspera, sem outro interesse na rua, foi possível saber que uma senhora doente, moradora no prédio em frente à vivenda, bem agasalhada, na tarde desse dia se pôs à janela – aborrecida por estar em casa. Viu, por acaso, um homem sair apressadamente da porta da vivenda e afastar-se num carro. Uma meia hora depois saiu outro, que se afastou noutra direcção. Mais tarde, dois homens sensivelmente da mesma altura, de gabardina e chapéu de pano, saíram da vivenda do vizinho da frente e afastaram-se separadamente.

A senhora ainda deu por outro personagem em frente da vivenda. Viu que usava luvas quando accionou a campainha da porta; ouviu-o quase gritar, pelo intercomunicador, que tinha esquecido os óculos; e mais não viu… Porque foi, justamente, quando os raios de sol, no poente, sem nuvens de premeio, banharam em cheio as vidraças da vivenda, reflectindo a claridade na casa em frente, incomodando a visão da senhora. Encadeada, a vizinha saiu da janela e fechou-a. Não sabe se mais alguém entrou. Ou saiu.

Findo o inquérito, de posse de todas as conclusões possíveis, o agente Prazeres tinha a certeza de saber como as coisas tinham acontecido. A dificuldade estava em redigir um circunstanciado relatório.

Será que uns bons samaritanos, entre os policiaristas amadores, lhe poderão dar uma ajuda?

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO