PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 19 de Junho de 2005

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2004-2005

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2004/2005

 

PROVA Nº 10

 

O MORTO ERA UM DOS PONTEIROS DO RELÓGIO

Autor: Zé da Vila

 

Tudo começou, efectivamente, mal. Aliás, logo no início do ano, não era difícil augurar o pior. Há muitos dias que a chuva, batida pelo vento forte, caía em bátegas constantes. Nuvens negras, céu de chumbo, opunham-se ao sol, que, a espaços, procurava anunciar tréguas de esperança. Vivia-se em ansiedade. A angústia residia nos corações e transparecia nos rostos. A rápida subida das águas, que transbordavam do Tejo! Águas que se iam espalhando pelos campos, dos quais se retiravam, apressadamente, os gados, as alfaias. Reforçavam-se portas e janelas dos silos…

Rebentou o Dique dos Vinte! A notícia transmite-se, em gritos de desespero. Em escassas horas, a lezíria transformara-se num aparente mar revolto, de onde emergiam as copas das árvores e tectos de cabanas mais altas, raras “ilhotas”, onde algumas cabeças de gado ovino, de mistura com touros e cavalos, se refugiavam, em união de sobrevivência. Pequenos barcos, impulsionados pela força dos remos e coragem dos homens, dispersos no trépido da inundação, procuravam resgatar homens e mulheres, freneticamente abraçados aos troncos cimeiros das árvores, água a salpicar-lhes os pés. Ouviam-se gritos de aflição e terror! Nas águas turvas, matizadas de lágrimas cristalinas, animais mortos eram arrastados, de mistura com troncos velhos…

A vila, o coração da lezíria, convertera-se numa ilha, sem alternativa.

No abismo dos que tudo perderam, até o ânimo, a solidariedade era a mão estendida. O município distribuía pão e recrutava voluntários para erguer valados; partilhavam-se agasalhos.

Seis dias. O vento e a chuva amainaram, sem que as águas mostrassem sinais de descer. O céu aberto proporcionara a Ricardo Bento deixar os hóspedes, retidos pela chuva, na vivenda e ir ao Quintal da Cerca. Visita de enguiço! Serafim, um forasteiro que ali chegara, oito anos antes, a pedir trabalho, com uma filha de 12, 13 anos pela mão e fora admitido como hortelão, acusara-o de “andar amantizado” com a filha (que se transformara numa linda mulher, diga-se!)! Ricardo negou. Serafim era um homem inteligente, com alguma cultura; falava com conhecimento de causa. Despedira-o!

O homem não se alterou. Grave, mas digno, desligou a mangueira do cano da água, levou-a para a arrecadação, com a enxada e a pá; tirou do bolso as chaves do portão e do “arrecadamento” e atirou-as para cima de uma cadeira. Saiu. Antes, voltou-se para o ex-patrão: “Volte a tocar-lhe… e dou-lhe cabo da carcaça”! O visado fantasiou lançar-se sobre o outro, mas ponderou que o homem, ainda que da sua idade e estatura, lhe ganhava em soberba e exercitada musculatura, já que a sua… a levara o ócio e o mulherio. Com riso amarelo, deixou-o ir, fechou a porta da arrecadação e o portão da entrada, com as chaves que trazia consigo, e voltou à vivenda. Entre esta e o local da desavença mediavam cerca de dois quilómetros, distância bastante para acalmar os débeis escrúpulos.

Os vários hóspedes, na falta de melhor, esperavam, para a costumada jogatina. Ricardo não se privou de contar a cena do despedimento, enquanto jogava. Atendeu um telefonema, com risos cúmplices e um “até logo”, beijado. Às 12h30, o jogo parou. Olhara pela janela e vira que a chuva parara, novamente. Pediu que subissem para o almoço, sem esperarem por ele; tinha um encontro importante… de negócios, acrescentara. Entretanto, irónico e com nítido prazer, intimou Matias Vale e Mariano, seus devedores de 103 e 62 contos, respectivamente: “Amanhã, quero o dinheiro, de contado. Nem que tenham de ir buscá-lo, de barco!” Haveria mais do que ira no olhar dos homens? Afinal, tinham vindo de Lisboa, cordialmente, para “serem depenados”…

Só três subiram. Matias, baixo e balofo, quase quadrado, muito vermelho, seguiu-lhe na peugada, para ter uma conversa séria. Perdeu-o e perdeu-se – afirmou, posteriormente. Mariano, com inopinada suspeita, voltou ao local do jogo, para espiolhar os três baralhos. Notou as, quase invisíveis, marcas! Desatinado, foi ver a cheia, para pensar e acalmar – defendeu-se, quando interrogado sobre a utilização do seu tempo, já que, 65 minutos após a saída de Ricardo, um ciclista ocasional, do alto da sua bicicleta, visionou, para além da alta sebe de espinheiros que rodeava o Quintal da Cerca, um corpo caído na eira, em posição incomum. Encontrando fechado o portão de zinco, liso e encimado por espigões aguçados, dirigiu-se ao posto da polícia.

O subchefe Afonso, comandante do posto, poderia não ser uma sumidade mental, mas era célere em acção. Dirigiu-se ao local com um guarda e o Sr. Leal (o ciclista). Tiveram de arrombar o portão, que estava fechado à chave, segundo verificaram. Afonso deixou o guarda e o ciclista ao portão e atravessou a rua empedrada, que ia desse portão à casa de arrecadação, aberta, chave na porta e deserta. Daí, olhou – à sua direita, uma horta bem tratada; à esquerda, o homem caído, no meio da eira! Observou o rasto de pegadas, que iam da rua empedrada ao corpo. Decidiu dirigir-se-lhe, formando, por sua vez, novo rasto; bem longe do existente, para não se confundir. Conhecia o homem caído: Ricardo Bento! De bruços, um braço debaixo do corpo e o rosto fortemente metido na terra enlameada apresentava duas feridas nas costas, visíveis através do casaco, ensanguentado. Estranho: o morto estava descalço e os sapatos junto dos pés, onde terminava o rasto – o único vestígio de entrada na eira. Não teve dúvidas de que estava diante de um assassínio… Tanta certeza, como tinha de que “aquilo era areia demais para a sua camioneta”!

Voltou ao arruamento, pisando o próprio rasto. Meditou que o inspector Cabral, de visita a um amigo e também retido pela cheia, era o homem certo para resolver o mistério. Aliviado pela ideia, voltou ao portão. O guarda, vivaço, desejoso de mostrar valimento, informou-o de que Alda, a filha do hortelão, ali passara duas vezes, parecendo muito interessada. Ordenou ao guarda que procurasse, da sua parte, o inspector e chamasse o médico, que era, simultaneamente, o delegado de saúde, ficando, depois, a tomar conta do posto. Quando o guarda se afastou, dispensou Leal, com a recomendação de que não espalhasse o ocorrido e, no dia seguinte, desse um “salto” ao posto, após o que, sozinho, pensou: teria a rapariga algo a ver com o assunto? Pelo sim, pelo não, examinou o rasto de sapatos altos, para cima e para baixo e junto ao portão, sem entrarem. Outros rastos não identificáveis, aqui e ali; poucos, que o tempo não convidava a andar na rua…

Menos de meia hora depois, chegava o afável inspector Cabral. Colocou as luvas de borracha e ouviu o subchefe, anotando, mentalmente, os factos. Tomou o caminho da casa de “arrecadamentos” e inventariou, desde as chaves na cadeira aos utensílios já citados e outros de igual teor. Chamou-lhe particularmente a atenção uma mesa grande, coberta com uma grossa manta. Saiu. Do lado esquerdo, atrás de altos arbustos, a casa de banho – tosca, mas limpa: apenas pia, chuveiro e lavatório. Do mesmo lado, a três metros da casa e do caminho empedrado, a eira circular (oito metros de raio, mediu), com pequenas poças de água e o corpo. Tirou fotos, em grandes planos, do conjunto. Aproximou-se do corpo, seguindo os rastos do subchefe, sempre a tirar fotos. Sem alterar a posição, revistou a vítima, extraindo a carteira, a chave do portão, um lenço, poucas moedas e duas cartas de um baralho.

Tomando os pés do morto como eixo central de um imaginário relógio, o corpo (qual ponteiro das horas) e o rasto dos sapatos da vítima (um suposto ponteiro dos minutos) simbolizavam 12h27! Examinou o interior e exterior dos sapatos, que se ajustavam aos pés da vítima e coincidiam com o rasto, que sugeria um passo normal. Tal quadro da ocorrência inspirava uma série de perguntas, sem resposta aparente: a) se Ricardo entrou na eira, ao encontro do seu matador, por que aparece descalço? b) Será que conhecia e confiava no assassino em perspectiva, para lhe voltar as costas? c) Se foi ferido fora da eira (e se arrastou, fugindo, para o centro dela), qual o significado de se descalçar? d) Se foi levado para a eira, onde estão os rastos do criminoso? Pediu uma caixa limpa (onde colocou os sapatos) e um envelope (com as meias que tirara à vítima), para envio ao laboratório. É a nossa arma secreta, comentou.

O delegado chegou. Cabral deixou o médico entregue à sua tarefa e, com Afonso, fez uma pesquisa minuciosa à cerca de espinheiros e arame farpado, não encontrando possibilidades de saída ou de se lhe saltar por cima, por melhor especialista no salto à vara! O médico e os seus ajudantes retiraram o cadáver, por baixo do qual não encontraram vestígios úteis. O inspector pediu ao médico que lhe desse “uma apitadela” após a autópsia e saíram.

Cabral e Afonso dirigiram-se para a vivenda, onde a notícia, que ainda ali não tinha chegado, causou mágoa e espanto. O Ricardinho seria um estupor; apesar de tudo, estimado pelos seus. No domínio da investigação, ficou a saber-se que os três homens (visitantes) almoçaram com o irmão de Ricardo e não saíram. Quanto a Matias e Mariano, já adiantámos os resultados. Não se conhecia quem lhe quisesse mal, a ponto de o matar! Cabral acabou por encontrar Alda, num café, junto à casa. Não sabia da morte e o inspector não a elucidou – falou de um pequeno acidente. Calculara – segundo ela declarou – que se passara algo, pois “Ric” prometera deixar o portão aberto, pouco antes das 13h00, e encontrara-o fechado. Passara duas vezes e vira um polícia. Ficou em autêntico desespero, quando Cabral, carinhosamente, lhe deu a notícia dolorosa. Antes, todavia, o inspector conseguira a informação de que o pai dela chegara a casa, zangado; não lhe falara e fechara-se no quarto. Cerca das 12h00, saíra do quarto, revolvera várias gavetas, deixara o almoço sobre a mesa (sem lhe tocar) e voltara a fechar-se no quarto, abrindo o rádio. Quando Alda saíra e entrara, quase duas horas depois, continuava a ouvir rádio, encerrado no quarto, sem lhe responder!

Por volta das 10h00 do dia seguinte Cabral recebeu um telefonema do médico, que acabara o essencial da autópsia. Faltava-lhe examinar o cérebro, para concluir o relatório. Podia adiantar que R. B. não morrera de sufocação, apesar de ter o rosto (como, aliás, todo o corpo) fortemente enterrado na terra mole. As facadas poderiam não ter sido fatais – mas foram: uma atingiu a espinal-medula; a outra o coração e fez um rasgão na carne, antes de se afundar nesta (a vítima teria um gesto de defesa ou estaria em queda). O braço debaixo do corpo tinha uma fractura post-mortem. Sobre a hora da morte, não adiantava; nesta altura, segundo sabia, o conhecimento deles seria mais exacto do que os seus cálculos.

Cabral quis fazer-lhe uma pergunta, mas o médico já desligara.

Mais matéria. Mais pedras avulsas para construir a casa da verdade, pensou!

 

E é a altura de desafiar os leitores a apresentarem os respectivos relatórios, justificados, que correspondam às interrogações postas – que, neste caso, se resumem às clássicas: quem? Como? Porquê?

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO