PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 3 de Abril de 2005

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2004-2005

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2004/2005

 

PROVA Nº 7

 

A VINGANÇA

Autor: Dic Roland

 

Um tiro certeiro – ou não fosse disparado pelo campeão das redondezas – liquidou abruptamente as esperanças de Berta que, até ao fim, confiara num milagre. O seu homem, o Zé da Púcara, hábil caçador e finalista do concurso anual da Sociedade Recreativa de Briol, concluíra a prova com 117 pontos, em 120 possíveis.

   O outro finalista e sério adversário, Chico do Anzol, iniciou a sua actuação com algum nervosismo, logo confirmado no primeiro tiro, em que obteve apenas nove pontos. O receio de ver fugir-lhe o título de campeão, de que tanto se orgulhava, era bem patente no rosto contraído e no mutismo a que se remeteu. Os tiros, porém, seguiram-se em ritmo regular e com pleno êxito, até ao décimo. 

O atirador fez, então, uma pausa maior. Um leve sorriso lhe iluminou a face; já contava 99 pontos e ainda dispunha de duas oportunidades! Só que, ou por excesso de confiança ou pelas “figas” ocultas de Berta, o penúltimo tiro teve novo impacto na zona dos nove pontos!

   Um “Ah!…” prolongado e triste saiu de muitas bocas, pois o Chico era o herói da grande maioria. Só Berta desafinou; o seu “Ah!” foi de júbilo, perante a renovada perspectiva de ver o Zé da Púcara sagrar-se vencedor.

   Valha a verdade, não só pela vitória do marido ela se mostrava ansiosa. Era também pelo cobiçado prémio, que lhe fazia arregalar os olhos sempre que passava pela mercearia do Ti Candeias: dois belos serviços, um de louça e outro de vidros, ocupando todo o espaço da vitrina, em torno de uma taça a rebrilhar ao sol!

   O derradeiro tiro era, portanto, decisivo; mas o concorrente não denunciou, desta vez, a mais leve perturbação. Pelo contrário: com umas delongas só comparáveis às de mestre Portunhas na conhecida cena dos correios, da “Morgadinha dos Canaviais”, o Chico do Anzol poisou a arma, puxou do lenço, limpou a testa suada e só depois, fleumaticamente, apontou ao alvo!

   E foi a apoteose! Os vivas e as palmas atroaram os ares, enquanto Berta, desiludida e furiosa, se escapava para longe…

 

   Assim terminou a tarde desportiva, integrada nas festas do orago da freguesia. No dia seguinte, domingo, haveria missa cantada e procissão, na parte da manhã; concerto pela filarmónica, à tarde, no coreto da praça; e baile à noite, na Sociedade Recreativa, com entrega do prémio ao vencedor do concurso.  

   Mas nem tudo corria bem naquela pacata aldeia. Em casa do Candeias o ambiente não era dos melhores. Por muito que nos custe há que falar no caso, embora com alguma discrição. Josefa não era – dizia-se – uma esposa exemplar. Os seus amores com o Chico do Anzol começavam a suscitar comentários ainda imprecisos, mas insistentes. Por outro lado, a geral simpatia de que beneficiava o rapaz (e talvez, até, a sua auréola de campeão) pesava muito na opinião pública, com evidente prejuízo para a mulher do Candeias. Este, por sua vez, de nada sabia… ou fingia não saber.

   Quanto ao Chico – solteiro, 24 anos fogosos, bom amigo – era também exímio no difícil desporto do namoro. E tanto assim que, tendo já um compromisso com a mais graciosa moçoila da terra, a Luísa costureira, não desdenhava aquela secreta variante com Josefa, mais velha dez anos! É certo que o feitio possessivo desta última lhe criava alguns embaraços, de que já pensara libertar-se…

Luísa, por sua vez, vivia em constante sobressalto com os impertinentes assédios do primo António, que ela não revelara ao noivo para evitar um provável confronto entre ambos.

   Para cúmulo das preocupações da moça, algo aconteceu nesse dia que lhe povoou o espírito de amargos temores: quando assistia, entusiasmada, à brilhante prova do seu candidato, este veio pedir-lhe que lhe guardasse o casaco. Cuidadosa por natureza, dobrou-o e colocou-o sobre o regaço; viu então cair de um dos bolsos uma folha de papel, amarrotada e rasgada à toa, que apanhou de imediato e onde leu, com inusitado espanto, uma estranha mensagem: ESTA NOITE DEZ HORAS FONTE.

Antes que alguém a surpreendesse, voltou a guardar o papel no bolso, mas não mais se libertou de uma estranha sensação de insegurança…

E Josefa? Extrovertida, graciosa e, sobretudo, muito senhora do seu nariz, vivia há tempos obcecada pelos encantos do Chico do Anzol, cuja alcunha, ao que parece, lhe dava jus a pescar em águas mais ou menos turvas. O ambiente doméstico foi-se deteriorando e Candeias, ciente ou não da triste verdade, transferira a sua paixão para o jogo da sueca, no bar da Sociedade Recreativa. Ali passava os serões, até altas horas!

 

Para quem vive em Briol, a mensagem é de fácil interpretação: alguém marcou encontro na fonte, situada próximo da estação dos comboios, a cerca de 800 metros da aldeia. A estação, há muito desactivada, é agora uma casa em ruínas, em zona erma só percorrida, em geral, por quem vai à fonte.

   Também para Luísa o bilhete não oferece dúvidas: o seu Chico é desafiado a comparecer na fonte, a horas que garantem uma completa privacidade… Prevendo um perigo iminente para o seu futuro, não hesita em agir: nessa noite, envolta num xaile com que tenta passar despercebida, vai a corta-mato para a estação, evitando a estrada e progredindo cautelosamente.

De repente, porém, uma voz bem conhecida rasgou a escuridão: “Ora viva, priminha! Não me digas que só conheces este caminho para a fonte!”

Luísa ficou paralisada. O medo fez-lhe perder a fala! E ainda não se voltara para enfrentar o primo e já este a segurava fortemente com as duas mãos.

“Larga-me, Tónio! Que estás a fazer aqui?”

“Isso pergunto eu, minha querida. Sou teu primo e acho que devo proteger-te a tais horas e em lugares como este” – respondeu, sarcástico.

“Larga-me, já te disse!” – e Luísa, percebendo que não conseguia afastá-lo a bem, tentou assustá-lo com a primeira mentira que lhe veio à cabeça. “Larga-me! Estou à espera do Chico, que deve estar a chegar…”

O ardil resultou. António não tinha estofo para enfrentar o rival e, com uma réstia de bom senso envolta em raivosa ironia, replicou: “Tudo bem, priminha. Que te faça bom proveito o campeão dos tiros. Mas depois não te queixes, se ficares ferida de asa…” E largando-a, desapareceu na noite.

Refeita do susto, Luísa ia prosseguir, quando percebeu um ruído próximo da estação. Apurou o ouvido e a vista (o quarto crescente permitia uma reduzida visibilidade) e conseguiu distinguir um vulto feminino a afastar-se, correndo. Um repentino pressentimento fê-la gritar: “Josefa!”

O vulto estacou. Ia voltar-se, mas suspendeu o movimento para, de imediato, retomar a corrida.

 

E o Chico do Anzol? Que é feito dele, que o perdemos de vista desde a sessão de tiro ao alvo? Pois é ele, afinal, quem permanece mais tranquilo, mais seguro do seu papel em relação aos que o rodeiam! Continua apaixonado por Luísa e já decidiu que a tomará por esposa muito em breve. Reconhece, com humildade, que se desviou do caminho certo ao “descarrilar” com a azougada Josefa; mas tenta absolver-se pelo assumido propósito de respeitar a sua prometida contra todas as tentações que ela, candidamente, lhe desperta, sem suspeitar, na sua ingénua pureza, que dentro dele crepita

“… um fogo que arde sem se ver,

uma ferida que dói e não se sente.”

O trágico, porém, é que Luísa não sabe disso, pela simples e prosaica razão de nunca ter lido Camões!… Aquele maldito papel foi o rastilho que fez explodir o paiol da sua cega confiança!

Depois do encontro com António, acabou por avistar Josefa perto da estação; deduziu que Chico teria comparecido ao encontro e que, mais cauteloso, conseguira esquivar-se a tempo.

A verdade, afinal, era bem diferente: disposto a cortar de vez, Chico não acedeu ao convite de Josefa e nunca mais se lembrou do papel!

Josefa, escondida na estação, interpretou à letra o grito de Luísa: “Larga-me! Estou à espera do Chico!…”. E pensou que seria uma loucura permanecer ali, denunciando em vão o seu comportamento…

 

Salta à vista que qualquer destas personagens tem razões para se vingar do Chico! Luísa julga-se traída pelo noivo. Regressa a casa com o coração desfeito; e, por volta da meia-noite, resolve sair de novo para ir bater à porta do “pinga amor” e terminar de vez com o noivado. Mas faltou-lhe a coragem; seria uma nova humilhação no mesmo dia…

Josefa não suporta a vergonha de que ia sendo vítima. Corre para casa, com o pensamento fixo em qualquer ideia maquiavélica. O marido, como de costume, ainda não voltou da batota e não voltará tão cedo.

Berta ainda não digeriu a “sua” derrota e recrimina o marido pelo insucesso! Para ela, é quase uma ofensa pessoal ver o Chico receber um prémio que já considerava seu! Jura tirar desforço contra o “inimigo”; e Zé da Púcara, atarantado, promete estudar um plano eficaz! Saem ambos de mãos dadas e almas retorcidas, a pensar no assunto.

António, já descrente das atenções da prima, não põe de parte um ajuste de contas com o rival, nem que seja por ínvios caminhos.

Por último, Candeias já se convenceu das infidelidades da mulher. Precisamente – e por ironia do destino – com o herói a quem seriam entregues os dois serviços expostos no seu estabelecimento! Era demais!…

 

Falta apenas um pequeno pormenor: a vingança!

O escândalo estoirou cedo, quando alguns madrugadores demandavam a igreja para os preparativos das cerimónias.

A casa dos Candeias é fronteira ao templo, do lado oposto à igreja e dela separada pelo adro. É um edifício de dois pisos que se ergue, isolado, entre uma vivenda ajardinada e moderna, de um lado, e uma pequena travessa, do outro, a ligar o adro à rua principal, onde se situa a sede da Sociedade Recreativa. A vivenda, agora desabitada, pertence a um casal de emigrantes, ausente na Venezuela. É para a travessa que se abre a porta de acesso ao primeiro andar da casa do merceeiro. Todo o rés-do-chão é ocupado pelo estabelecimento, com duas portas para o adro e, entre elas, uma larga vitrina.

Pois era essa vitrina que, naquela manhã, provocava a estupefacção e a obrigatória paragem de todos os passantes! A enorme vidraça estava feita em estilhaços, com arestas longas e muito afiadas. Lá dentro, na montra, sobre um vistoso pano de veludo, os dois serviços estavam completamente reduzidos a cacos! … Intacta, apenas a taça, brilhante e altaneira, como que a desdenhar, na sua metálica frieza, da perecível fragilidade do barro e do vidro!

No meio do caos, onde era impossível descobrir uma única peça intacta, jaziam duas enormes pedras estranhamente envoltas em grossas serapilheiras. A maior, dentro de metade daquilo que fora uma bela terrina; a outra, sobre o gargalo decepado que pertencera a uma elegante garrafa!

Alguém se vingara, com requintes de malvadez, do inocente Chico do Anzol! E este, para cúmulo do azar, ainda sofreu uma punição acrescida quando, naquela manhã, acorreu ao local, avisado por um amigo. Após uns minutos de muda contemplação, tentou estender um braço até à taça, para ver se ela sofrera estragos. Não o conseguiu, porém, sem rasgar a camisa e ferir ligeiramente o ombro direito. Bem pode dizer-se que foi um final doloroso, a que nem faltou, sequer, uma gota de sangue…

 

Aqui termina esta pequena história que, contra o que é habitual, não tem ladrões, nem assassinos, nem polícias. Tem apenas um misterioso agente vingativo, eivado de maldade, que é necessário descobrir, com a devida justificação.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO