PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 6 de Fevereiro de 2005

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2004-2005

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2004/2005

 

PROVA Nº 5

 

CRIMOCÍDIO

Autor: A. Raposo

 

“Caro Inspector Fidalgo, saudações policiárias.

Sei que a feitura de problemas policiais é uma tarefa complexa, trabalhosa e difícil. Um bom problema policial sai quando sai. Todos os anos, regularmente, tenho-lhe enviado um que o amigo costuma publicar. Porém, este ano, a coisa falhou. Não sei bem o que está a suceder, as células cinzentas não tem ajudado mesmo nada. Para cúmulo, como sabe, a Nelinha fugiu-me de casa mais uma vez. Parece que voltou para a enxerga de um tal capitão que você bem conhece. Já não tenho nada a esperar da vida. A minha fase de criatividade está a passar (já passou!). Agora, já nem consigo fazer um simples problema policial. Porém, não desisti de pôr o seguinte estratagema em prática (nem é ideia minha, vi numa série televisiva) e assim vou-lhe contar o que pretendo fazer: PONHO ESTA CARTA NO CORREIO HOJE OU AMANHÃ, a seguir meto uma bala na cabeça. Quando você a receber, fará o favor de explicar o caso na PJ; eles deverão ficar baralhados, pensando em crime, quando afinal se trata de suicídio, para não arranjar problemas a ninguém, muito menos à Nelinha. Apesar de estar muito magoado com ela, não a quero presa, por crime alheio.

Vou explicar-lhe como vou fazer o suicídio e necessito o favor da sua preciosa colaboração. Na minha casa de campo em Palmela, tenho junto à janela do meu escritório uma macieira, frondosa, que não fica a mais de três metros da janela. Farei da seguinte forma: ato um elástico forte ao tronco e estico até à minha secretária. Com a janela aberta, obviamente. Disparo na têmpora e a arma vai-se embrenhar nas ervas altas que rodeiam o pé da macieira. Ficando no meio delas, escondida. Já fiz alguns testes e parece que resulta (é claro que não disparei a arma).

Também esta ideia – confesso – não é minha, já a li num livro policial… Assim, julgo fazer o suicídio (crime) perfeito! Eu estarei no outro mundo, porque neste já não faço falta, mas cumpro o meu desiderato: farei um problema policial ou, no mínimo, forneço material para isso. Dou à Nelinha a liberdade de voar para os braços de quem lhe aprouver e finalmente baralho a PJ durante pelo menos um dia ou dois. Estou certo que com este tema o amigo vai publicar um problema policial – se não se importasse, faria de mim o autor. Uma espécie de homenagem póstuma. Desde já agradeço. Mas também preciso que o amigo vá terça ou quarta-feira, quando receber a carta, à PJ, para com ela, limpar o nome da Nelinha ou de qualquer outro potencial suspeito.

Desculpe-me este imbróglio e lá o espero, no outro mundo para me contar do desfecho deste caso. O seu amigo de sempre, Detective Tempicos.”

 

O Inspector Fidalgo acabou de ler a carta que lhe fora enviada para o PÚBLICO e ficou pensativo. Olhou para o relógio. Eram quatro da tarde de quarta-feira, 3 de Novembro, já tinha lido imensa correspondência e resolveu parar. Com aquela carta é que não estava a contar, parecia-lhe mais uma brincadeira do amigo Tempicos. Na dúvida decidiu confirmar e após um telefonema para casa de Tempicos a que ninguém respondeu, resolveu ir logo naquela tarde ter com um seu amigo da PJ e levar a carta.

 Felizmente este não só estava de serviço, como lhe tinha passado pela mão o caso do estranho crime. Antes de mais foi decidido dirigirem-se a Palmela, a casa de Tempicos, para procurar a arma do suicídio. Pelo caminho, foram trocando impressões sobre o caso e o Inspector Fidalgo foi abastecido de um jogo de fotocópias e fotografias da cena do crime que o deixava ao corrente de todos os detalhes do caso. Informava-o que a arma, não fora ainda encontrada, o que configurava “crime”.

Quem encontrara o corpo fora a mulher-a-dias que todas as segundas-feiras, mesmo nos feriados e dias santos, ia lá a casa (tinha chave para poder entrar) e disse não ter mexido em nada tendo telefonado imediatamente para o 112.

O Inspector Fidalgo passou os olhos pelo relatório da polícia, de novo e releu:

No computador de Tempicos foi encontrada pela PJ uma mensagem enviada por este a um amigo às 14h15 de sábado, 30 de Outubro, informando-o que o combinado jantar de domingo teria que ser alterado para o domingo seguinte, pois tinha-lhe surgido um compromisso inadiável. O dono da papelaria foi, como era hábito, todos os domingos, cerca das 15 horas entregar o jornal à casa de Tempicos. Naquele dia tocou à campainha, ninguém atendeu e acabou por deixar o jornal na caixa do correio. Tempicos só comprava o jornal PÚBLICO por causa do policiário.

O corpo caíra na alcatifa da sala (conforme fotos anexas) Os braços estavam caídos, ao longo do corpo, o direito mais subido que o esquerdo. As mãos, estranhamente, tinham luvas calçadas. A luva correspondente à mão direita apresentava resíduos de pólvora. Porém, as faces estavam ensanguentadas, bem como a roupa, junto ao peito da vítima. A carpete também estava ensanguentada. A bala atravessara as fontes da vítima e alojara-se bem no centro do mecanismo do relógio de pé que ficava do lado direito da sala, junto à parede. Os ponteiros ficaram imobilizados às12h00. Havia impressões digitais nos estilhaços do vidro do relógio.

Na segunda-feira de manhã a empregada encontrou o corpo. Não mexera em nada. Nem tão pouco fechara a janela. A polícia, chamada, chegou rapidamente.

Nelinha – contactada telefonicamente – dissera à polícia que tinha abandonado a casa de Tempicos após uma pequena discussão no sábado, metera-se no seu pequeno VW mais uma malinha com roupa e abandonara-o para sempre. “Sans rancune”. Deviam ser umas três horas da tarde. Ao sair despediu-se de Tempicos dizendo-lhe que não tinha nada contra ele, mas agora apetecia-lhe deixá-lo, que ele estava a perder qualidades e a ganhar defeitos, e decidia ir até casa da avó, em Grândola. Quando saiu notou que Tempicos estava a fechar o envelope de uma carta para o jornal PÚBLICO. Disse ainda que tinha lá estado em casa um amigo do policiário, salvo erro Avlis que teve com ele uma discussão. Avlis saiu antes dela. De manhã estivera ocupada a limpar o relógio de parede, um bonito objecto antigo, mas que ainda trabalhava lindamente. Estivera a dar óleo de cedro na base de madeira trabalhada. Acertara-o conforme o PÚBLICO daquele dia aconselhara. Pena que o tiro lhe tivesse, provavelmente, estragado o mecanismo. Naquele dia, até ter-se ido embora, nem ela nem Tempicos tinham saído de casa.

Avlis, que a PJ também conseguiu contactar através de telemóvel, afirmou que saiu no seu carro da casa de Tempicos, onde estava Nelinha, por volta das 14h30. Dirigiu-se a Lisboa, à estação da CP (Sta. Apolónia), apanhou o comboio e nessa noite pernoitou no Porto. Ficou muito admirado por a polícia o informar do suicídio de Tempicos. Não lhe parecia que ele fosse homem para isso. Não lhe pareceu deprimido. E apesar da idade era ainda um grande mulherengo. A PJ perguntou-lhe se assistiu durante o tempo que esteve com Tempicos ao envio de um “e-mail”. Avlis confirmou.

Uma coisa que o aborrecia no Tempicos, quando lá ia a casa, era a sua mania de ter sempre a janela aberta da sala, para respirar ar puro. Sabia que a casa estava resguardada. Uma cerca no quintal não permitia a entrada a intrusos. Um engenhoso processo mecânico electrificado afastaria qualquer candidato.

Discutira com ele as classificações – e a perda de pontos que aborrecera ambos – no campeonato do PÚBLICO-Policiário. Ambos ficavam quase sempre nos lugares cimeiros. Avlis, brincalhão costumava arreliar Tempicos dizendo-lhe “você além de canhoto é canhestro a responder aos problemas”. Tudo na maior. Não era caso de morte.

Do cofre de Tempicos desaparecera uma valiosa colecção de moedas de ouro antigas, que ele orgulhosamente mostrava a todos os amigos que o visitavam. O cofre ficou aberto, vazio, mas não arrombado. 

Fidalgo observou ainda o jogo de fotografias que mostravam a sala onde o corpo foi encontrado. Era um vulgar escritório com uma única porta de entrada. Ao fundo uma janela aberta. À direita um bonito relógio de pé, ladeado de estantes com livros que ocupavam o resto da parede. Uma alcatifa que cobria praticamente toda a sala. Ao lado esquerdo uma secretária tendo em cima um computador portátil. Duas cadeiras junto à secretária. Um corpo jazia sobre a alcatifa.

Ao fim da tarde, o amigo da PJ telefonou ao Inspector Fidalgo e confirmou que a arma encontrada fora a que disparara o tiro em Tempicos cuja bala se cravou no relógio e à qual pertencia a cápsula encontrada junto do corpo. Impressões digitais na arma: nenhumas. As impressões digitais nos estilhaços de vidro do relógio eram da Nelinha.

O Inspector Fidalgo naquele dia foi para a cama cedo. Antes de adormecer tinha solucionado o estranho caso.

Os estimados confrades decerto também poderão chegar ao mesmo resultado, bastando para tal fazer o habitual relatório-solução.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO