PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 26 de Março de 2006

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2005-2006

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2005/2006

 

SOLUÇÃO DA PROVA Nº 4

 

SMALUCO NO TRIBUNAL

Autor: Inspector Boavida

 

Desde o início das investigações que o delegado do Ministério Público terá suspeitado que as razões da morte de Pedro Montes estariam relacionadas com o crime de tentativa de abuso sexual, sustentando essas suspeitas no facto de a vítima apresentar sinais de agressão física e de ter a sua T-shirt rasgada e as calças… caídas. Isto, claro, conjugado com o estranho facto do jovem estudante ser visita habitual da casa de um professor “cinquentão e solitário” com o pretexto de receber explicações de matemática e nunca levar consigo quaisquer livros ou cadernos escolares…

O procedimento do jovem Pedro Montes de ir de mãos a abanar para as explicações de matemática não escapou, aliás, à atenção dos seus vizinhos, nomeadamente do poeta Amílcar Gomes, homossexual assumido, que comentou esta situação com o comerciante Aníbal Pinto, também ele um homem solitário, como os demais habitantes do prédio (o pintor Rizzo parece viver apenas para a sua arte e o professor Costa nunca deu a conhecer uma sua qualquer ligação afectiva ao longo do tempo em que vive no segundo andar daquele prédio, onde o crime ocorreu).

Segundo os depoimentos do poeta e do pintor, estes teriam saído de casa exactamente ao primeiro toque do sino da igreja. Considerando, porém, que o poeta vive no terceiro andar e diz que saiu quando “de repente começou a ouvir o sino da igreja” e que o pintor habita no primeiro piso e afirma que “deitou as pernas ao caminho assim que ouviu a primeira badalada do sino”, é óbvio que um deles mente. Se tivessem saído ao mesmo tempo (recorde-se que o elevador do prédio estava desactivado), seria o pintor o primeiro a chegar à porta da rua e não o poeta!

Acresce ainda que o poeta é “incrivelmente surdo” e pode não ter ouvido o sino ao primeiro toque, ao contrário do pintor, que não sofre de surdez e está sempre atento às badaladas do sino por onde regula o seu “tempo”, o que reforça ainda mais a impossibilidade de ser o poeta o primeiro a chegar à rua. Jorge Costa viu o seu vizinho do andar de cima sair primeiro e só depois saiu o seu vizinho do piso inferior (este confirmou, aliás, no seu depoimento, que se cruzou com o professor à porta do prédio). Em conclusão: o pintor mente, ele não pode ter saído de casa exactamente à primeira badalada do meio-dia!

Antes de ter sido desferido o tiro que abateu o jovem Pedro Montes, houve discussão, agressão física… roupa rasgada, e isto tudo não se faz em breves minutos! O homicídio ocorreu, obviamente, antes de Jorge Costa chegar a casa. Talvez ao meio-dia, com um tiro disparado enquanto se ouviam as badaladas do sino da igreja. É verdade que o poeta Amílcar Gomes é incrivelmente surdo, mas decerto que ele não deixaria de ouvir o disparo da pistola se entre o som da “morte” não se tivesse interposto o barulho do sino. Sublinhe-se ainda que antes do tiro terá havido gritos, luta… barulhos que só poderiam escapar a ouvidos surdos como os do poeta!

Todos desconfiavam que as “aulas” que Pedro Montes recebia do professor não eram bem de matemática!... Tais desconfianças despertavam naturalmente muita “curiosidade auditiva” nos vizinhos do prédio, sobretudo nos que passavam boa parte do dia em casa e moravam nos pisos imediatos. O poeta, coitado, por muito que se esforçasse, dificilmente ouviria alguma coisa. Mas o mesmo não se passaria com o pintor, que ouve bem… e que nos últimos tempos poderia ter escutado o que acontecia no andar de cima sempre que o professor e o aluno estavam “nas explicações”…

Era hábito o professor atrasar-se para as “explicações” com o jovem Pedro Montes e o pintor resolveu “pintar a manta”. Ele ouviu o jovem entrar em casa de Jorge Costa. Sem perder tempo, foi até lá, tocou a campainha e o rapaz abriu a porta. Trocou dois dedos de conversa, ensaiou alguma sedução e depois fez aproximação física, mas… o rapaz, pelos vistos, era muito fiel ao “seu professor”. Firmemente decidido a forçar o rapaz a satisfazer os seus ímpetos sexuais, Afonso Rizzo agrediu-o. O rapaz, para se defender, pegou na arma que se encontrava na mesinha do hall mas, durante a luta, o pintor apoderou-se da velha Colt 32 e ameaçou-o de morte. Calças em baixo mas, talvez involuntariamente, devido à excitação, carregou no gatilho e saiu bala!

Depois, enquanto o “surdo” Amílcar Gomes descia apressadamente as escadas, ainda a ajeitar a sua “fatiota” até chegar à porta da rua, o seu vizinho do primeiro andar encontrava-se no “piso errado” a limpar as impressões digitais que havia deixado na arma assassina e todos os vestígios da sua presença. O pintor desceu então desvairado pelas escadas abaixo ainda a vestir-se e quase chocou com o professor, já o poeta ia longe. Naquela hora, Afonso Rizzo terá eventualmente pensado que, se tudo se tivesse passado como havido sonhado, a história talvez culminasse com uma “bronca da grossa” e também com consequências trágicas, mas para ele próprio, porque nesse dia o professor chegou um pouco mais cedo do que era habitual!...

Recorde-se que o professor ouviu a primeira das doze badaladas quando estava a cerca de quinze metros do cimo da calçada e estava a soar a última badalada quando chegou à porta do prédio. Depois de ter “palmilhado” a calçada suportando o peso dos seus cinquenta anos, é crível que o professor tenha subido as escadas do prédio até ao segundo piso muito devagar. Quando abriu a porta de casa confrontou-se com “um macabro achado” no hall de entrada. Era meio-dia e sete minutos quando telefonou para a polícia. Não poderia ter sido ele, portanto, o autor do crime… de homicídio. Não teve tempo para isso!

O burburinho que, de repente, se gerou no tribunal, acordando o detective Smaluco, justifica-se por, mais uma vez, a justiça ter constituído arguido durante a instrução do processo um homem que viria a verificar-se, durante o julgamento, estar inocente. Situações destas ocorrem com inusitada frequência, umas vezes por descuidada investigação dos homens da Polícia Judiciária, outras por falta de preparação dos procuradores do Ministério Público ou, ainda, por um “julgamento” apressado dos juízes dos departamentos de Investigação e Acção Penal, sobre quem recai muitas vezes uma excessiva carga de processos. Na história da justiça portuguesa são inúmeros os casos de inocentes condenados ao cárcere, enquanto os criminosos se passeiam livre e impunemente pela vida!

 

 

© DANIEL FALCÃO