PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 19 de Março de 2006

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2005-2006

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2005/2006

 

PROVA Nº 5

 

INVESTIGANDO UM AUTOR

Autor: Nove

 

“Eu estava a visionar o filme, a imaginar a cena:

Dia 7 de Novembro, cerca das nove e meia da noite, Samuel Dantas vê que a chuva abrandou, veste a gabardina e sai. Ao caminhar ouve o ruído que os seus pés provocam no chão, o estalido das folhas mortas que vai pisando. Uma ou outra pequena rajada de vento faz com que se desprendam grossas pingas de água das árvores. Não repara nas pessoas com quem se cruza. A morte vai com ele para casa de Madalena Silva, lá ao fundo da avenida. Faltam poucos minutos para ela deixar de o incomodar. Liquida-a e regressa exactamente pelo mesmo caminho. A chuva, que entretanto voltou, como se fora para chorar a infeliz Madalena, cai sobre as árvores, sobre ele e sobre a sua sombra, que, de fugitiva antes do crime, passou a perseguidora.

Contudo, o assassino de Madalena podia não ter sido Samuel Dantas. Não havia indícios suficientemente fortes e decisivos para o inculpar, embora fosse o único, entre 11 possíveis suspeitos, que apresentava uma falha no álibi. Resolvi por isso reanalisar todos os dados.

Telefonei ao Fonseca, a minha fonte na polícia. Mostrou-se admirado com o meu silêncio de três dias e dispôs-se a aturar-me. Estendi à sua frente a lista com os nomes dos colegas de Madalena que jantaram com ela na noite do crime. Perguntei-lhe se tinham descoberto mais alguma coisa. Ele riu-se, dizendo-me que por ali eu não ia lá. Eram oito álibis mais do que comprovados. O Fonseca não tinha dúvidas sobre a culpabilidade de Samuel Dantas. Tentei abalar as suas certezas mas nada consegui. Antes de desligar o telefone convidei-o para almoçar comigo no dia seguinte. Queria ver se o espremia um pouco mais.

Na análise deste caso sentia-me como se estivesse perante um cofre bem fechado mas com uma pequena e apertada fenda – a falha no álibi de Dantas – que era a fissura por onde os ladrões teriam subtraído todo o conteúdo, isto na opinião de alguns. Urgia dar a volta ao assunto.

Fui ao restaurante Bambu, aquele onde Madalena jantara com oito colegas na noite do crime. Passara uma semana sobre o triste acontecimento. Mostrei ao chefe dos empregados de mesa um papel com os nove nomes do grupo. Ele disse-me que já respondera à polícia, mas prestou-se a dar-me exactamente a mesma informação que transmitira às autoridades. Reconhecera de imediato todos os nomes e afirmara que, com excepção de Madalena Silva, nenhuma daquelas pessoas havia deixado o restaurante antes das dez da noite. E com toda a certeza, pois tinha estado sempre atento à mesa deles, já que, do barulhento grupo, só dois rapazes vira por ali anteriormente.

Concentrei-me então nos três possíveis suspeitos que restavam: Laura Delgado, Samuel Dantas e sua mulher Telma Vaz Dantas.

Depois de matutar bastante, vi que precisava de verificar o tipo de letra e as particularidades gráficas da máquina de escrever de Telma Dantas, uma Remington que ela comprara há poucos anos, talvez em 1954. Quando a visitei, num prédio novo perto do Areeiro, na zona para onde Lisboa se tem expandido, pedi-lhe, como que casualmente, para experimentar a máquina, o que ela aceitou com solicitude.

Sentei-me, meti uma folha e comecei a dactilografar o texto deste mesmo parágrafo. O que importava era escrever qualquer coisa. Telma ia conversando comigo. No fim escrevi a data, retirei a folha e guardei-a no bolso. Pareceu-me tratar-se de um documento precioso para comparar com outras peças dactilografadas que interessavam à investigação da morte de Madalena Silva.

Nessa tarde, acompanhado da minha secretária Maria das Neves, visitei ainda Laura Delgado, que nos recebeu no andar onde residia. Conversámos e bebemos café os três. À noite veio uma notícia funesta. O Fonseca comunicou-me que Laura fora encontrada morta em casa, muito provavelmente assassinada. Fiquei apreensivo e ainda mais quando soube, pelo médico legista, que o intervalo estimado para a morte incluía o período em que estivéramos a conversar com ela. Eu e Maria das Neves corríamos o perigo de sermos dados como suspeitos do possível assassínio. Felizmente, o pessoal da polícia apenas concluíra que Laura recebera duas pessoas antes de morrer, sendo uma delas mulher. O fundamento desta conclusão assentava em três chávenas encontradas na mesinha da sala de visitas, todas com restos de café e uma, para além do café, com uma pequena mancha de batom. Esta marca, segundo a polícia, não seria de Laura porque ela não tinha os lábios pintados nem costumava pintá-los. Como pelo batom não chegariam a Maria das Neves, tranquilizei-me.

As surpresas, porém, não tinham acabado. Na noite seguinte, quando fui à casa de praia do casal Dantas, dei com o cadáver de Telma. A vivenda, isolada sobre uma arriba e debaixo de chuva, quando iluminada pelos faróis do meu carro, parecia fazer parte de um filme de terror. Parei o automóvel a uns 30 metros da habitação e aproximei-me com a ajuda de uma pequena lanterna de bolso. Não consegui evitar uns tropeções, bem como a produção de algum ruído. A porta da entrada estava apenas no trinco. Havia luz no primeiro andar. Vinha de um quarto que dava para o mar. A janela estava aberta e o chão já se molhara. Ao debruçar-me vi um corpo caído sobre os penhascos e nele reconheci o rosto de Telma. O pesadelo era real. O caso complicava-se ao extremo.

Recordei-me, a propósito, de um julgamento famoso, ocorrido em Londres, que tive o privilégio de seguir quando ali fiz um estágio de jornalista. Nesse processo, que envolvia apenas ingleses, também se verificaram três mortes sucessivas. A autoria do triplo crime começou por ser atribuída a uma pessoa que veio a ser ilibada. E isso aconteceu quando já ninguém esperava que ela pudesse fugir a uma severíssima pena. O advogado de defesa, para desmontar o muito bem elaborado libelo acusatório, partiu de um inocente tratamento por tu – que provou existir entre duas testemunhas – e, com base numa errada anotação horária de uma dessas testemunhas, que escrevera 21h00 em vez de 9h00, demonstrou, de maneira brilhante, que o talvez mais sólido dos álibis, o do verdadeiro assassino, era falso.

Também eu, depois de muito porfiar, acabei por descobrir que Samuel Dantas estava inocente. Ele era, e ainda deve ser, pessoa assaz desagradável. Tal não me impediu de procurar a verdade que os primeiros elementos recolhidos pareciam negar. As coisas passaram-se da seguinte maneira […]”

 

O relato anterior, da autoria de um jornalista investigador de crimes, a que não falta prosápia, termina com a descrição da forma habilidosa como o criminoso construiu um álibi aparentemente inatacável. Nessa descrição, os detalhes que levaram à descoberta da fraude são postos em particular destaque. Mas o autor não reparou nalguns pormenores, configurando situações impossíveis, pouco prováveis ou de difícil aceitação, que o texto que acabámos de ler apresenta e que lhe retiram credibilidade. Aos nossos caros detectives pede-se que descubram esses pormenores.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO