PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 19 de Fevereiro de 2006

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2005-2006

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2005/2006

 

PROVA Nº 4

 

SMALUCO NO TRIBUNAL

Autor: Inspector Boavida

 

Há perto de três semanas que o detective Smaluco passa quase todos os seus dias no Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa para testemunhar em dois processos-crime por homicídio, que resultaram de casos em que esteve directa mas involuntariamente envolvido. No primeiro processo, o seu depoimento foi determinante para a libertação de uma jovem que havia sido injustamente condenada a 18 anos de prisão efectiva por um crime que não cometeu e para o consequente castigo penal, aplicado de forma agravada, a um seu amante e verdadeiro criminoso (Anabela Monteiro e Ricardo Gomes, recordam-se?). No outro processo, as declarações de Smaluco contribuíram para que Natália Vaz, sua ex-companheira e mulher amada, pudesse ouvir o delegado do Ministério Público pedir a pena mínima para o crime de que é acusada, nas alegações finais do seu julgamento, cuja sentença será lida dentro de algumas semanas.

Entre um processo e outro, Smaluco teve tempo ainda para deambular sem pressas pelos corredores do tribunal e assistir dolente a diversas sessões de outros julgamentos. Numa delas quase adormeceu a ouvir alguns curiosos diálogos entre o delegado do Ministério Público, arguido e testemunhas de um processo-crime por ofensas corporais e homicídio qualificado praticados na pessoa de um jovem adolescente, que decorreram mais ou menos assim:

– Diz o sr. Jorge Costa que ao entrar em sua casa deparou com a vítima, já sem vida, caída no hall de entrada. Afirma ainda que antes de entrar no prédio avistou na rua dois dos seus vizinhos e que ambos lhe pareceram muito nervosos e agitados. Quer concretizar melhor?

– O meu vizinho do piso de cima, o sr. Amílcar Gomes, tem perto de 35 anos, vive no prédio há pouco mais de quatro meses. É um escritor e poeta assumidamente homossexual, tem normalmente uma postura calma e tranquila, e vi-o sair a correr do prédio, ainda a abotoar o colarinho e a ajeitar o nó da gravata, quando me encontrava já no cimo da calçada. De seguida, alguns momentos depois, quando me encontrava junto à porta do prédio, vi sair esbaforido o meu vizinho do andar de baixo, o sr. Afonso Rizzo, desgrenhado e ainda a vestir o casaco, que quase chocou comigo e nem desculpa pediu. Mas o que mais me incomodou foi ter de subir mais uma vez as escadas a pé até ao segundo andar, depois de ter caminhado calçada acima até à praceta onde moro, porque o raio do elevador do prédio continua desactivado por avaria. Quando cheguei a minha casa, abri a porta e dei de caras com o jovem Pedro Montes, de “T-shirt” rasgada e de calças caídas, tombado no chão, já sem vida, com sinais evidentes de luta e agressão física, atingido com um tiro na cabeça. A arma, de minha propriedade, uma velha “colt” 32 herdada de meu pai, que há muito tinha guardado numa das gavetas do pequeno móvel de entrada, carregada para responder a eventuais assaltos, cada vez mais frequentes na zona onde vivo, estava caída no chão, ao lado do cadáver.

– Tem ideia da hora em que descobriu o cadáver?

– Tenho. Passava muito pouco do meio-dia. Quando estava a cerca de 15 metros do cimo da calçada, ouvi a primeira das 12 badaladas; e quando cheguei junto à porta do prédio onde vivo estava a soar o último toque do sino. Embora a pressa fosse muita, subi as escadas muito devagar por que as minhas cinquentenárias pernas já não são o que eram. Tinha o meu aluno Pedro Montes à espera para a habitual explicação das sextas-feiras e eu já estava com o atraso de cerca de uma hora. Encontrava-me, no entanto, tranquilo por ele ter desde há muito uma cópia da chave da porta de minha casa, por ser normal e frequente o meu atraso. Nas manhãs de sexta-feira, a aula que dou na faculdade termina por volta das dez e meia, mas acabo sempre por me atrasar. Porém, e apesar de tudo, desta vez cheguei mais cedo do que o habitual. Eram 12 horas e 7 minutos quando liguei para a polícia, conforme se pode comprovar nos autos.

(…)

– Sr. Amílcar Gomes, este tribunal gostaria de saber o que aconteceu consigo no dia do crime. A que horas saiu de casa, para onde foi e porque aparentemente se encontrava muito mais agitado do que habitualmente.

– Meu caro doutor, nesse dia tinha encontro marcado com um grande amigo meu ao meio-dia, numa esplanada das redondezas, quando de repente comecei a ouvir as badaladas do sino da igreja. O encontro era demasiado importante para perder tempo e corri imediatamente escadas abaixo em direcção à rua. Soube depois que o jovem Pedro Montes terá sido assassinado mais ou menos a essa hora.

– Só mais uma pergunta, sr. Gomes. Não se recorda de ter ouvido ou sentido sinais de discussão, gritos, barulhos de luta ou de agressão física no piso inferior, antes de sair de casa?... Um tiro, por exemplo?!

– Não. Nada, nadinha, sr. doutor! A manhã estava calma e eu estava completamente absorto no meu trabalho, desde as nove da manhã. Tinha em mãos uma nova obra que penso publicar muito brevemente e foi exactamente para tratar de pormenores da edição do livro que saí de casa nesse dia fatídico ao meio-dia.

(…)

– Sr. Afonso Rizzo, este tribunal gostaria que confirmasse o seguinte: segundo as suas declarações à Polícia Judiciária, o senhor passou toda a manhã a trabalhar e só saiu de casa exactamente ao meio-dia, não ouviu qualquer disparo ou ruídos “estranhos” no andar de cima e lembra-se apenas de se ter cruzado com o seu vizinho Jorge Costa à porta do prédio onde mora.

– É verdade. O meu relógio está quase sempre atrasado e regulo-me normalmente pelo sino da igreja, cujo som ninguém pode deixar de ouvir, tal é o barulho ensurdecedor que ele faz. Creio que a única pessoa no prédio que tem dificuldade em ouvir as suas badaladas é o vizinho do terceiro andar, que é incrivelmente surdo. Bom, assim que ouvi a primeira badalada do sino deitei pernas ao caminho e dirigi-me à baixa, onde tinha um compromisso inadiável com um importante galerista.

(…)

– Sr. Aníbal Pinto, o senhor é dono do prédio onde se deu o crime e habita o seu rés-do-chão. Assegura que saiu de casa cedo, tendo regressado por volta das 15 horas, depois de um telefonema do sr. Amílcar Gomes que o pôs ao corrente do crime. Afirma ainda que há muito desconfiava das razões da visita semanal do jovem assassinado. Importa-se de confirmar estas declarações e de descrever o tipo de imóvel de que é proprietário e a personalidade dos seus inquilinos?

– Com todo o gosto. Segundo se consta, o jovem estudante muito raramente transportava consigo livros ou cadernos escolares, facto que foi, por algumas vezes, objecto de conversa entre mim e o meu inquilino do terceiro andar, que é uma pessoa muito astuta, sensata e perspicaz. Tanto eu como os restantes moradores do prédio, ao todo quatro homens solitários e pouco dados a grandes conversas com a vizinhança, temos vidas recatadas de uma rotina quase confrangedora. Eu sou comerciante, saio por volta das oito horas da manhã e regresso normalmente por perto das nove da noite. O meu inquilino do primeiro andar é pintor, passa grande parte do dia em casa, nunca recebe visitas e não se lhe conhecem quaisquer aventuras amorosas. Quanto ao professor Jorge Costa, nunca se soube que tivesse qualquer relação afectiva e há muito que a sua vida tem sido comentada em surdina neste velho prédio de quatro pisos, que “vive” quase paredes-meias com a igreja.

 

Smaluco acordou assarapantado com o burburinho que, de repente, se gerou no tribunal e mal percebeu o nome que o delegado do Ministério Público pronunciou quando pediu com veemência a condenação de um dos depoentes como autor do crime que transitava em julgado. Mas nem precisava ouvir… O leitor não estava lá e sabe muito bem quem disparou a arma assassina, não é verdade?

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO