PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 11 de Junho de 2006

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2005-2006

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

Prova nº 9

Prova nº 10

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2005/2006

 

SOLUÇÃO DA PROVA Nº 5

 

INVESTIGANDO UM AUTOR

Autor: Nove

 

O relato que nos foi dado analisar respeitava ao fim da década de cinquenta do século passado (“vide” referência à compra de uma Remington, há poucos anos, talvez em 1954). A acção localizava-se em Portugal, sobretudo na região de Lisboa (Telma Dantas morava perto do Areeiro, na zona para onde Lisboa se expandia). Decorria o mês de Novembro, altura em que não são de estranhar chuva e folhas de árvore caídas nas ruas. Não havia telemóveis, nem teleconferências, nem computadores pessoais.

Lembradas estas balizas, vejamos então onde o autor se enganou ou deixou passar algo muito pouco provável.

Ouvir o estalido de folhas mortas ao serem pisadas, num dia de chuva, no passeio de uma avenida onde circulavam peões, não é de esperar, pelo menos de forma notória. O ruído característico das folhas secas que são esmagadas sai abafado quando elas se encontram molhadas e, o que é muito importante, quando já foram pisadas mais de uma vez.

A sugestiva imagem da sombra que passa de fugitiva a perseguidora não se pode verificar de noite, pelo menos nas condições normais da iluminação pública. Numa rua, à noite, a sombra mais pronunciada que originamos muda de direcção conforme nos aproximamos ou afastamos de cada candeeiro.

O autor do relato, encontrando-se ao telefone, não podia estender, à frente da pessoa que se encontrava do outro lado da linha, a lista com os nomes dos colegas de Madalena.

Não é de crer que, num restaurante, o chefe dos empregados de mesa identifique clientes esporádicos pelos respectivos nomes. Ora no grupo de Madalena ele só conhecia de vista dois rapazes. Assim, é muito estranho que possa ter estabelecido uma correspondência segura entre os nove nomes que lhe foram apresentados e as pessoas que ele vira durante o jantar. O nosso investigador, todavia, parece ter achado isso perfeitamente normal.

O autor do texto que analisámos diz-nos, a certa altura, que começou a escrever em casa de Telma Dantas o parágrafo que estávamos a ler. Se o tivesse feito não nos apresentaria alguns verbos no passado. Teria posto, por exemplo, “O que importa é escrever alguma coisa” e não “O que importava era escrever alguma coisa” ou teria dito “Telma vai conversando comigo” e não “Telma ia conversando comigo”.

Nesse parágrafo também não apareceria a expressão “escrevi a data”. Apareceria, isso sim, a data que de facto tivesse sido dactilografada, coisa que não vimos.

Ainda no parágrafo em causa, se tivesse sido escrito no momento em que o autor referiu, seriam de todo impossíveis os registos relativos à remoção da folha e à sua recolha no bolso, por serem acontecimentos posteriores ao acto de dactilografia mencionado.

 Para terminar, em relação ao parágrafo sob análise, há que dizer que nele nunca caberia aquela observação sobre a preciosidade do documento ou da folha em que o próprio parágrafo estaria escrito, já que a observação é feita depois do papel ter sido retirado da máquina e guardado no bolso.

Custa a perceber a tranquilidade que o nosso autor manifestou na sequência da visita que ele e a secretária fizeram a Laura Delgado. Ele esqueceu-se, entre outras coisas, das impressões digitais que ambos terão deixado nas chávenas e em relação às quais não haviam tomado, como era natural, qualquer precaução. Por vezes, nas histórias policiais, abusa-se do recurso a estas marcas, como se elas aparecessem sempre bem gravadas e levassem instantaneamente aos respectivos causadores. Neste caso olvidou-se por completo o seu valor.

O autor do relato não estava em condições de distinguir o cadáver de Telma Dantas sobre os penhascos. A noite era de chuva, a casa encontrava-se num sítio isolado e a janela da qual se debruçou, situada no primeiro andar, dava sobre o mar. Quer dizer, nada se via para o exterior e os penhascos não podiam estar iluminados pela luz do quarto. Mesmo que ele se tivesse socorrido da sua pequena lanterna de bolso, o que não referiu, seria muito difícil discernir um corpo lá em baixo e, ainda, reconhecer-lhe o rosto.

Em língua inglesa não se pode falar do tratamento por tu como em português. Existe o pronome “thou”, que respeita exclusivamente à segunda pessoa do singular, mas não é utilizado na conversação corrente. Vê-se que aquele julgamento em Londres deve ter sido inventado!

 As dúvidas sobre a veracidade desse mesmo julgamento reforçam-se quando é dito que alguém escrevera 21h00 em vez de 9h00, porque o mais natural, entre ingleses, seria falar-se de “9.00 p.m.” e “9.00 a.m.”

 Finalmente será de notar que o relato, no seu conjunto e independentemente dos enganos internos, deve ser considerado como um documento de veracidade muito duvidosa pelo facto de ser praticamente impensável haver, naquele tempo, um jornalista dedicado à investigação de crimes com liberdade para, entre outras coisas, poder seguir criticamente as investigações oficiais e pôr em causa as conclusões das autoridades estabelecidas.

O texto do jornalista que nos foi dado apreciar era, por tudo o que se viu, uma peça que não merecia crédito.

Nota: alguns dos enganos aqui referidos foram encontrados durante a leitura de um interessante romance policial de um escritor bem conhecido. Vê-se, assim, que nem os melhores autores estão livres de cair num ou noutro engano. O aspecto curioso desta questão é o facto de ser com base em erros de pormenor que, numa boa parte da literatura policial, se chega ao criminoso.

 

 

© DANIEL FALCÃO