PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 25 de Março de 2007

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2006-2007

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2006/2007

 

PROVA Nº 5

 

A MORTE DA DIGITÁLICA

Autor: Onaírda

 

Chamavam-na “Digitálica” e foi a vítima. Professora de Informática, Natália Sá era formada em Engenharia Informática e especialista em sistemas digitais – “digitálicos”, diziam os alunos, parodiando o ensino. Leccionava numa escola secundária, e dava aulas em sala única para o efeito. Tinha por costume o ter sempre em cima da secretária um copo de vidro opaco com água de beber, sendo novamente cheio a meio de cada aula pela auxiliar de acção educativa Olga. A especialidade da professora deu a que aos alunos lhe chamassem “prof. Digitálica

No decorrer da aula das 17h00, a professora sentiu-se indisposta, nauseada, com vómitos, sensação de vertigens e de discromatopsia. Tinha aflições de diarreia, chegou a ir à casa de banho, regressou à sala, mas não melhorou e às 17h45 caiu inanimada no chão. Alunos deram o alarme, veio o director e o marido, também professor na escola. Chamou-se o 112. O médico socorrista diagnosticou que a vitima apresentava sintomas de intoxicação e foi levada de imediato ao hospital, onde chegou já cadáver. O director espalhou a notícia de que a professora tinha sido envenenada. Acusação gravíssima. Via-se que sabia algo mais e insinuava quem era o autor do crime. 

O inspector Garçôa, o “teórico” da PJ, tomou conta do caso e de imediato foi à escola falar com o director. Como a sala deste era no mesmo piso onde leccionava a “Digitálica”, mostrou-se ao contínuo. Este, quando soube quem era, não o encaminhou logo para o director e forneceu-lhe pistas importantes.   

Afirmou que nesse dia Olga tinha mudado sempre a água do copo em todos os períodos. E o curioso, segundo lhe disse Olga, é que a professora bebia sempre o conteúdo do mesmo, dando a impressão de que estava a tentar restabelecer o equilíbrio hidroelectrolítico no seu organismo. Devido à posição estratégica, viu sempre quem entrou na sala da “Digitálica” durante os intervalos, dado que ela saía sempre da sala. Assim, no das 11/12 entrou o professor de Ciências Humanas e Sociais Eduardo Sá, marido da professora. No das 14/15 voltou a entrar o Eduardo e no das 15/16 entrou o professor de Ciências Físicas e Naturais Taborda. O contínuo pediu a atenção do “teórico” para esta personagem, pois dizia-se que era um antigo apaixonado da ”Digitálica” e que tinha sido repudiado por ela, não tendo aceite bem a atitude da amada. Sabia que na aula prática de Química das 15h00 ele tinha confiscado a um aluno um frasco de “605 forte” (agora com outra designação comercial), veneno muito usado na agricultura. Desculpou o aluno, mas não o devolveu no fim da aula. As visitas de Taborda à professora originavam ciúmes de Eduardo e este desconfiava que a mulher não resistia ao assédio do colega. Todos viam que ela repudiava Taborda, menos o marido.

Garçôa preferiu não ouvir mais nada sem falar primeiro com o director. Este pouco adiantou sobre a morte, mas chamou a atenção do comportamento do professor Taborda, no assédio à “Digitálica”, e se falou em envenenamento talvez fosse precipitado, mas mantinha a opinião. Garçôa pediu-lhe facilidades para interrogar possíveis suspeitos, aqueles que entraram na sala de aula e que podiam ter metido veneno no copo de água da professora, para que esta ingerisse o liquido mais tarde. O director chamou os suspeitos e aproveitou para entregar ao inspector as fichas de cadastro pessoal não só destes, mas também da falecida. Curiosamente, e talvez para justificar o elevado número de faltas que davam ao serviço, os professores tinham uma ficha clínica invejável.

Foi chamada Olga. Esta afirmou que tinha entrado na sala em todos os períodos, tinha enchido sempre o copo de água e tinha confirmado que a professora bebia todo o conteúdo. Quanto aos rumores sobre o Taborda e a Natália, disse que não tinha nada com isso e que lhe passava ao lado.

De seguida veio o professor Taborda. Tinha 54 anos e bom aspecto, apesar de sofrer, em estado um pouco avançado, da síndroma de Wolff-Parkinson-White. Era obrigado a tomar medicamentos a preceito, mas evitando completamente alguns que poderiam interactuar negativamente. Era professor de Ciências Físicas e Naturais e as aulas práticas no laboratório eram o seu expoente profissional, em especial a trabalhar com tóxicos. Tentou ver a sua colega Natália no intervalo das 15/16, mas não a viu. Quando lhe falou no frasco do veneno apreendido ao aluno, ficou vermelho. Confirmou a apreensão do frasco ao aluno, que não o tinha devolvido no fim da aula e que tinha espalhado o conteúdo numa sanita. O frasco vazio deitou-o no contentor do lixo. “Incrível”, pensou Garçôa.

Quando Garçôa interrogou Eduardo Sá, este estava calmo. Viu que o “teórico” tinha a sua ficha clínica nas mãos, explicou-lhe que, tal como sua mulher, era um doente conformado com o seu estado. Sofria de “insuficiência cardíaca” e uma arritmia diagnosticada como supraventricular. Estava medicado com um fármaco que, para além de dar força ao coração (chamado “efeito inotrópico positivo”), lhe reduzia a frequência cardíaca, obrigando o seu coração a bater a um ritmo mais lento e fácil de suportar. Nunca lhe disse o nome do fármaco. Garçôa pouco se importou com esta omissão. Eduardo guardava este medicamento em local seguro e inacessível a terceiros, incluindo sua mulher. No dia da morte desta, deslocou-se à sua sala, no intervalo das 11/12 e no das 14/15, porque a mulher lhe pediu que lhe trouxesse um analgésico (tipo aspirina) pois sentia-se mal. Não a viu em ambas as vezes e retirou-se para a sua sala. Pelo telemóvel, disse-lhe que tinha metido no copo o tal analgésico. Almoçaram em turno diferente. Só a voltou a ver caída no chão e já desmaiada, a seguir ao alarme. Nunca referiu qualquer aspecto da vida conjugal com a mulher. Garçôa franziu o sobrolho.

O “teórico” ainda interrogou o director para saber algo mais sobre a Natália. Relativamente a um romance entre Natália e Taborda, não sabia de nada, mas já tinha sido informado do caso do frasco de veneno que Taborda tinha apreendido a um aluno e que, de certeza, o tinha consigo, quando entrou na sala da colega às 14h50. “A ocasião faz o ladrão, não é, senhor inspector? E custa-me dizer isto, mas Taborda não é boa peça.” E estranhou o destino que Taborda deu ao frasco e ao seu conteúdo. Admirava-se que Natália mantivesse um romance com ele, pois também era doente como o seu marido. Estava medicada a preceito. Sofria do coração, pois tinha uma “cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva” e por vezes apresentava situações de “hipercalcemia” e” hipocaliemia” significativas. Garçôa não teve acesso ao resultado da autópsia, por já ter a presunção de quem era o criminoso, mas porque a análise da mesma iria ser feita pelo MP para fundamentar a acusação. No entanto, soube que a falecida apresentava uma significativa desidratação e também “hipercalcemia”.

Quando o ajudante de Garçôa coseu o processo, rotulou-o “A Morte (da) Digitálica” (501/06 homicídio) O “teórico” sorriu.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO