PÚBLICO – POLICIÁRIO

 

Publicação: “Público”

Coordenação: Luís Pessoa

 

Data: 29 de Outubro de 2006

 

Campeonato Nacional

Taça de Portugal

2006-2007

 

Regulamentos

 

Prova nº 1

Prova nº 2

Prova nº 3

Prova nº 4

Prova nº 5

Prova nº 6

Prova nº 7

Prova nº 8

 

Resultados

 

 

CAMPEONATO NACIONAL 2006/2007

 

PROVA Nº 1

 

ACONTECEU HÁ 50 ANOS

Autor: Rip Kirby

 

Havia anos que não encontrava o meu amigo Eduardo Trindade na nossa cidade situada à beira da Ria Formosa. Os nossos encontros, ultimamente, aconteciam em Lisboa, mas no dia 10 de Junho de 2005 encontrei-me com ele lá na nossa cidade.

Sentados à mesa de um café conversámos e recordámos algumas passagens da nossa adolescência e juventude. Foi a associação destas recordações com a data atrás referida que me fizeram recordar os factos a seguir relatados.

Havia precisamente 50 anos, tal como neste dia, eu e o Eduardo estávamos num café. Nessa altura, a nossa conversa não versava sobre recordações, ainda era cedo para isso, mas sim factos do nosso dia a dia.

A certa altura, juntou-se a nós o Silveira que nos deu a notícia que corria pela cidade. O Carlos Gustavo havia sido encontrado morto na sua casa havia poucos minutos, dizia-se que tinha sido assassinado.

Carlos Gustavo era um abastado ex-imigrante muito conhecido na cidade. Vivera muitos anos nos Estados Unidos, tendo regressado a Portugal quando se aposentara. Diziam as más-línguas, não sei se com razão, que a sua abastança provinha de negócios ilícitos levados a cabo naquele país. Havia até quem afirmasse que ele havia sido um dos lugares-tenentes de Al Capone.

Na ocasião, o facto interessou-nos tanto quanto poderia interessar a jovens como nós. Lembro-me, contudo, que foram indiciados três suspeitos entre os quais um sobrinho da vítima, que, apesar de jurar a sua inocência, viria a ser condenado a 20 anos de prisão. Acabou por não cumprir a pena toda, pois decorria o nono ano da pena quando se suicidou. Lembro-me também que a sua condenação gerou alguma controvérsia na cidade onde as opiniões acerca do caso divergiam.

Houve outros suspeitos.

Um deles foi o Zé Americano. Alguns anos mais novo que Carlos, estivera também nos Estados Unidos e a sua fama não era melhor que a de Gustavo, mas a sua prosperidade não fora nenhuma. Dizia-se que o Zé havia pertencido a um gang rival daquele a que pertencera Gustavo e que uma noite, durante uma operação de transporte de bebidas alcoólicas, a policia surpreendeu o bando daquele. O Zé havia conseguido escapar, acusou o Gustavo de os ter denunciado e jurara que o havia de matar. Quando regressaram a Portugal, o seu relacionamento era de certo modo pitoresco. Davam-se bem, estavam quase sempre juntos falando dos velhos tempos, mas quando o Zé bebia lá vinham as ameaças de morte. Estas ameaças constantes e o facto de terem sido encontradas as suas impressões digitais na coronha da arma, ainda que não muito recentes e meio encobertas, foram os fundamentos para ser considerado suspeito.

O outro suspeito foi Ricardo Gonçalves, agente da PSP e grande amigo do sobrinho de Gustavo.

Falei deste episódio a Eduardo. A princípio ele teve alguma dificuldade em se recordar, mas acabou por se lembrar, discutimos sobre o mesmo e tal como então não estávamos de acordo. Eu achava que havia algo de errado em todo aquele drama, enquanto Eduardo afirmava que nada de estranho acontecera.

Perante a minha insistência, ele prometeu que iria aos arquivos tentar ver o processo. Passados alguns dias, apareceu-me com um volumoso maço de fotocópias, que o chefe do arquivo, seu amigo, autorizou que ele retirasse dos documentos originais. Durante algumas horas, vasculhámos aquela papelada e seleccionámos algumas passagens que achámos importantes.

No seu depoimento, alguns dias depois do crime, o sobrinho da vítima havia dito que, como não trabalhara naquele dia, 9 de Junho, tinha ido para a praia onde estivera até perto das 15h00. Para isso pedira emprestado um pequeno barco. A confirmação pelo dono do barco de que de facto o tinha emprestado não teve valor, pois era irmão do suspeito. Também não foi possível encontrar quem tivesse visto o jovem na praia. Apesar de estar um tempo excelente, poucas pessoas foram para a praia naquele dia. Após ter voltado, esteve com uns amigos com quem foi ao cinema, o que foi confirmado pelos invocados. À noite, dormiu em casa de uma namorada. Não foi possível arrancar-lhe o nome dessa namorada nem nenhuma mulher se apresentou como tal, apesar dos múltiplos apelos que, nesse sentido, foram feitos. Lembro-me que depois começara a circular o boato de que a namorada em questão seria uma mulher casada.

O Zé Americano, quando interrogado, afirmou que no dia 9 logo pela manhã tinha ido para Faro, para o velório de um familiar próximo, falecido no Hospital da Misericórdia. Voltara no dia 10 bastante perto das 17h00. Invocou 20 testemunhas que poderiam atestar as suas afirmações.

Para o facto de existirem as suas impressões na arma, que lhe foi mostrada, explicou:

“Ora, a arma é do Gustavo e eu quando ia lá a casa gostava de brincar com ela. Saudades de velhos tempos.”

Ricardo Gonçalves, devido à sua amizade com o sobrinho do velho gangster, era frequentador assíduo da residência de Gustavo. Segundo afirmou, o dia 9 fora o seu dia de folga, estivera de serviço durante a noite, mas devido ao aperto desse dia tivera que prestar serviço das 15h00 até às 18h00. Porém, antes de iniciar o serviço, um pouco depois das 14h00, foi a casa de Gustavo; este pedira-lhe para ir lá, pois tinha um assunto importante para tratar com ele. Na realidade, o que o velho queria era que ele o ajudasse a preencher um impresso – tinha dificuldades com o português –, para depositar 100 contos no banco ainda nesse dia. 

Prestou o auxílio que o velho lhe pediu e saíram os dois a caminho do banco, tendo-se separado à porta do estabelecimento bancário.

O velho Gustavo entrou e ele dirigiu-se para a esquadra. Ficou de voltar lá a casa depois de sair do serviço, Gustavo convidara-o para ir comer um arroz de conquilhas, mas não o voltou a ver. Quando lá foi cerca das 19h00 bateu à porta mas não foi atendido.

Na esquadra foi confirmado que ele havia ali chegado minutos antes das 15 horas. A polícia passou uma busca na morada de Gustavo, tentando encontrar alguma pista que ajudasse a deslindar o caso. A arma usada encontrava-se sobre uma mesa a alguns metros do cadáver e não muito longe deste a cápsula da bala disparada.

A casa, excluindo o sangue derramado, encontrava-se impecavelmente limpa. Na cozinha, os cromados do fogão a lenha brilhavam tal como brilhavam as panelas de cobre alinhadas numa estante. Num armário, pratos, copos e talheres encontravam-se devidamente arrumados. A um canto da cozinha, junto ao fogão, no balde destinado ao lixo, haviam restos de uma refeição. Num compartimento que Gustavo utilizava como escritório foi encontrado preenchido o impresso atrás referido, mas sem qualquer sinal de que o depósito tivesse sido processado. A assinatura, embora mais firme do que de costume, parecia ser a do velho. Dos 100 contos nem sinal.

Um comerciante de Santa Catarina da Fonte do Bispo confirmou que tinha comprado uma propriedade a Carlos Gustavo e que lhe havia pago 100 contos em dinheiro dois dias antes da sua morte. O velho não gostava de cheques.

O médico que examinou o corpo logo que fora encontrado no dia 10, cerca das 8h00, afirmou que a morte não fora instantânea, teria ocorrido cerca das 17h00 do dia anterior e fora causada por uma bala que lhe perfurou um pulmão, provocando grande hemorragia. Afirmou ainda que, apesar de grande, a hemorragia não fora intensa. O que moderara a intensidade da perda de sangue fora uma carteira que o velho tinha no bolso do casaco e que ficou entalada entre o ferimento e o chão, tendo de alguma forma servido de tampão e demorado o derrame de sangue. Perguntaram ainda ao médico porque razão não teria o velho pedido auxílio, ao que ele respondeu que a vítima havia perdido os sentidos. Quando os recuperou, se é que os recuperou, já estava demasiado combalido. Desde que fora atingido até que a morte ocorreu teriam passado entre 2 a 3 horas.

Entre os objectos de uso pessoal do sobrinho de Gustavo foram encontradas cinco notas de mil escudos. O rapaz mostrou-se muito surpreendido. Negou que aquele dinheiro fosse seu e não foi capaz de explicar a sua proveniência ou como teria ido parar nos seus pertences. Afirmou sempre não ter nada que ver com a morte do tio.

Durante o julgamento o jovem foi defendido por um jovem advogado nomeado pelo tribunal que pouco se interessou pelo seu constituinte. Brilhante mesmo foi o delegado do Ministério Público, que nas suas alegações finais pintou o jovem como um monstro capaz de matar um tio que o estimava e com quem vivia. 

A investigação estivera a cargo de um velho e obscuro agente, em cuja folha de serviço nunca havia sido averbado qualquer facto relevante para a sua carreira.

No final da leitura daqueles documentos, o inspector virou-se para mim e disse-me:

“Tens razão, Rip, houve aqui muita incompetência.”

Será que na realidade houve incompetência?

Explique pormenorizadamente.

 

SOLUÇÃO

 

 

© DANIEL FALCÃO