INTRÓITO

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ALICE JÁ NÃO MORA AQUI

Detective Jeremias

Há vidas assim. Há vidas que se voltam do avesso, quando menos se espera, apenas porque não existe outra saída. Alice vira-se forçada a mudar de vida. Saiu da cidade onde sempre vivera, estudara e trabalhara. Agora, à distância, conseguia ver como se deixara mansamente enredar numa teia. É assim a história de Alice. Pouco depois de nascer os pais sofreram um acidente de viação fatal e a avó, que sempre cuidou dela, morreu quando ela tinha 18 anos. Alice morara desde essa altura com o companheiro, num relacionamento amoroso que hoje em dia se rotula como tóxico. Viveu quase dez anos de subtis humilhações e controlo permanente. O parceiro de vida, a suposta alma gémea, estendera sobre ela uma falsa asa protectora, que a isolara e a impedira de ter vontade própria. Quando se apercebeu do logro em que se tinha tornado a sua vida e pôs um ponto final à ligação, começou o pesadelo. Um verdadeiro filme de terror, que teve de tudo um pouco, uma espiral crescendo sem fim: ameaças, cenas de ciúme, perseguições, agressões verbais e físicas, queixas na polícia, tribunais, ordens de restrição nunca cumpridas, mais ameaças e mais agressões. Perante uma polícia que não consegue garantir protecção e um poder judicial sem qualquer poder, Alice resolveu mudar de vida.

Partiu para bem longe, sem dizer nada a ninguém e tentando não deixar rastro. Demorou algum tempo a planear as coisas, mas Alice era inteligente, desembaraçara-se do passado e tornara-se engenhosa em situações críticas. O ponto de partida foi conseguir uma identidade nova, com um cartão de cidadão falsificado, que lhe mudou os apelidos e diminuiu cinco anos à idade. Num só dia, deixou o quarto onde vivia, vendeu o portátil, cancelou a conta bancária, livrou-se de telemóvel e apagou-se da internet. Pela noitinha, deixou o norte e rumou ao Algarve, onde o Verão e o turismo trazem maior facilidade de emprego e vida nova. O corte de cabelo radical e um vestuário mais jovem alteraram-lhe muito a aparência. Arranjou um trabalho resguardado, a salvo de olhares. Conseguiu alugar um estúdio, num piso alto, só com possibilidade de acesso pela porta de entrada e tratou logo de mudar a fechadura. Após um mês de tranquilidade, Alice estava bonita, confiante e segura. Mas pouco depois, tudo mudou. Alice começou a sentir-se observada. Na rua suspeitava que era seguida e no trabalho desconfiou que alguém lhe abrira o cacifo e mexera na mochila. Até dentro do minúsculo apartamento pressentia qualquer coisa estranha, completamente irracional. Alice sabia que não era saudável esta sensação esquisita de ser vigiada e de ter a vida vasculhada. Queria pensar no assunto e encontrar uma solução. Uma inundação, causada por uma tromba de água inesperada, interditou o seu local de trabalho e deu-lhe oportuna folga. Regressou a casa. Ao abrir a porta, o olhar de Alice arregalou-se de espanto – espalhadas em cima da sua cama-sofá reconheceu as suas peças de roupa íntimas, sobre elas espojava-se, completamente nu, o homem da Casa das Chaves que lhe substituíra a fechadura da porta.

 

Fontes:

Blogue Repórter de Ocasião, 4 de Maio de 2025

Borda D’Água do Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2018

 

© DANIEL FALCÃO