INTRÓITO

A VIOLADA | Abrótea

SORUMBÁTICO | Filipa Wilson

NOITE INTERMINÁVEL EM TOBAGO | Cris (Maria Cristina de Aguiar)

A ALEGRIA DAS PEDRINHAS | Peter Pan

VÁ-SE LÁ SABER PORQUÊ… | A. Raposo

JUNHO CHUVOSO | Rigor Mortis

INQUIETAMENTO NO PRINCIPADO | Inspector Moscardo

AS NOITES QUENTES DE AGOSTO | Búfalos Associados

RAPOSO | Zé

UM DEDÃO ESPECIAL QUANDO SURGE OUTUBRO | Inspetor Boavida

 (…)

 

BORDA D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2018

 

 

NOITE INTERMINÁVEL EM TOBAGO

Cris (Maria Cristina de Aguiar)

Chegara a Tobago numa tarde de Março, sozinha, a suar por todos os poros, apenas com o seu nome bíblico e um saco de plástico de supermercado na mão, contendo escassos pertences, pois a sua pequena trolley-bag preta havia-se extraviado pelo caminho, não chegando ao seu aeroporto de escala, em Londres. Após uma longa e extenuante viagem, surpreendeu-se ao sentir um bafo quente no rosto e ao avistar uma paisagem exuberante logo ao pisar a pista do aeroporto. Era a sua primeira viagem intercontinental e vinha de muito longe, do seu rectangulozinho à beira-mar plantado, junto ao oceano Atlântico. Sabia que a prima do seu amigo e correspondente, de há quase duas décadas, iria esperá-la e lá estava ela a acenar-lhe, na zona das chegadas, com um largo sorriso nos lábios. Apresentaram-se e Cherise levou-a dali, na sua carrinha. Sentaram-se a descansar, numa improvisada esplanada de estrada, onde tomaram uma bebida de fim de tarde e conversaram longamente. Gostou da casa colonial, em tons fortes de rosa e azul, onde iria pernoitar, sem a companhia de ninguém. Sara apercebeu--se que aquela residência estava num sítio ermo e calmo, perto do mar. Tinha dois pisos. Cá em baixo estava a salinha de visitas, pequena e acolhedora, onde acendeu o aparelho de televisão, porque achou desde logo aquele silêncio confrangedor. Lá em cima havia três quartos, a cozinha, onde arrumou as compras na geleira, e uma minúscula toilette, a cujos lavabos se dirigiu, para iniciar a lavagem dos dentes. Reparara que o relógio da cozinha marcava já onze horas da noite. Encontrava-se ainda na casa de banho e a preparar-se para se ir deitar quando ouviu um barulho estranho que vinha de baixo. Espreitou pela exígua janela e vislumbrou um par de vultos junto à porta exterior. Não demorou a dar-se conta de que se tratava de dois homens magros, aparentemente jovens, e com um aspecto assustador, visto que eram negros e trajavam de negro, segurando uns paus compridos. Sara notou que mexiam nervosamente na maçaneta, tentando rodá-la. Teve uma reacção imediata e foi pé ante pé trancar a porta do quarto e apagar a luz. Trancou-se igualmente por dentro naquele WC e esperou, com o coração a bater descompassadamente. Tentou encontrar ali algo com que se pudesse defender, caso eles conseguissem arrombar as portas e entrar. Pegou no reservatório de loiça do autoclismo e sentiu-se ridícula. Estava completamente à mercê deles. Ganhou coragem e voltou a espreitar. Os dois nativos continuavam por lá, na mesma azáfama e com um automóvel preto por perto. Manteve-se silenciosa, imóvel, mas com tremores incontroláveis, uma sensação de pânico e frio gélido. Olhou inúmeras vezes para o seu relógio de pulso e viu os minutos e as horas a passar muito lentamente. Temeu o pior. Pensou que o mais certo seria vir a ser surpreendida de um momento para o outro, ver a porta metida para dentro, ver-se atacada e violada. Não iria mais regressar ao seu país natal. Houve uma altura em que se foram embora no carro preto e ela quase respirou de alívio, alimentando ainda uma esperança. Mas cedo regressaram. Rezou para que a manhã surgisse depressa e a rua voltasse à normalidade, com as pessoas a ir para o trabalho. Sentia-se tão tensa e exausta, com uma enorme necessidade de repousar, porém o medo nem permitia que fechasse os olhos. Entretanto, começou a ouvir-se uns batuques ao longe, o que tornou a situação ainda mais assustadora. Finalmente amanhecera. Assegurou-se de que eles já lá não estavam, assim como o carro. Desceu as escadas e telefonou ao amigo, a contar o sucedido. Ele prometeu voar nesse mesmo dia de Trinidad e ir ter com ela. Ao chegar, enlaçou-a fortemente num abraço fraterno e baptizou-a de “The Adventure Girl“.

 

Fontes:

Blogue Repórter de Ocasião, 1 de Junho de 2025

Borda D’Água do Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2019

 

© DANIEL FALCÃO