A VIOLADA
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EM TOBAGO | Cris (Maria Cristina de Aguiar) A ALEGRIA DAS
PEDRINHAS | Peter Pan VÁ-SE LÁ SABER
PORQUÊ… | A. Raposo JUNHO CHUVOSO
| Rigor Mortis INQUIETAMENTO NO
PRINCIPADO | Inspector Moscardo AS NOITES
QUENTES DE AGOSTO | Búfalos Associados RAPOSO
| Zé UM DEDÃO ESPECIAL
QUANDO SURGE OUTUBRO | Inspetor Boavida (…) BORDA
D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2018 |
AS NOITES QUENTES DE AGOSTO ou As Condessas Redondas (Conto dedicado a A.
RAPOSO & LENA e a todos os moradores do Conde de Redondo) Búfalos Associados Com a chegada
de Setembro, acabadas as férias de Agosto, tudo em Lisboa parecia voltar à
chata normalidade. Ali, na zona do Conde de Redondo, tudo corria sem alterações
de maior. Cada vez menos lugares para estacionar os carros, as casas com
preços de aluguer cada vez mais caros, o lema era "quem está bem
deixa-se estar e a vida vai andando". A nossa
história tem como protagonistas um simpático casal de lisboetas moradores no
bairro há mais de 15 anos, ela Lutegarda Gonçalves
Crespo, esposa legítima de Balbino Gonçalves Crespo, sediados num terceiro
andar na rua Ferreira Lapa. O acaso fez com que viessem a ser amigos de um
outro casal, ele Honorato Gomes Freire, e ela Maria Zulmira Gomes Freire,
mais conhecida por Mizú, moradores na rua Bernardo
Lima, ali bem pertinho. A
extraordinária coincidência dos apelidos e dos nomes das ruas estarem todos
relacionados com a toponímia do bairro, tornaram-nos
amigos. E como as senhoras, com o passar do tempo, não tivessem evitado o
arredondar de maneira bem visível as formas antigamente juvenis, a vizinhança
tinha começado a alcunhá-las satiricamente de "As Condessas
Redondas". Corria uma
quente manhã de Setembro. Lutegarda atendia à porta
o sr. Ângelo, o guarda nocturno, que todos os meses vinha receber a sua
mensalidade. -"Já não vinha cobrar há dois meses, minha senhora, mas
afinal podia ter cá vindo no mês passado porque, ao contrário do que me tinha
dito, a senhora esteve cá em Agosto." – “Eu?” – surpreendeu-se Lutegarda. –
“Sim, quando eu andava por aí nas minhas rondas, vi-a muitas vezes na varanda
a fumar um cigarrinho com o seu marido, naquelas noites que estiveram tão
quentes. Era sempre por volta da meia-noite. E, deixe-me dizer-lhe uma coisa,
era um regalo para os olhos ver assim a senhora, às vezes com tão pouca roupa
na varanda... Não pode levar a mal... Quem passa na rua não pode deixar de
olhar para cima, pois não?” – “Tem a
certeza de que não se enganou?” – “De maneira
nenhuma, eu sei muito bem qual é a vossa janela.” – “Bom, diga
lá quanto é que eu devo e desapareça!” – “Oh diabo, querem ver que já meti a pata na poça?” Lutegarda ficou furiosa. Depois de ter pagado e despachado
o Ângelo, bateu com a porta e veio para dentro sem conseguir dominar a raiva
que sentia. A verdade é que tinha passado todo o mês de Agosto na Foz do
Arelho a passar férias com as crianças, em casa de uma tia. Além disso nunca
na vida fumara. A mulher que o guarda-nocturno
tinha visto à janela em pelota, ou quase, e a fumar na companhia do seu
marido não podia ter sido ela. Estava mais do que visto. O Balbino, o marido,
que tinha ficado em Lisboa por motivos de trabalho, tinha certamente
arranjado uma amiguinha para o refrescar nas noites quentes de Agosto. – “Mas
espera lá que logo, quando voltares do emprego, vais levar para o tabaco! E a
gaja, se eu descubro quem é, desfaço-a.” O fim da tarde
chegou e dispensamo-nos aqui de descrever a recepção
que estava à espera do Balbino. De linguagem “vicentina” para cima e pratos
pelo ar, nada faltou. O Balbino, quando conseguiu uma pausa para respirar um
pouco, lá conseguiu justificar-se. – “Oh, querida, tu nem sabes como estás a
ser injusta! O homem na varanda não era eu! Eu não queria contar-te porque sei
que és amiga da Maria Zulmira, mas acontece que o marido dela, o Honorato,
veio pedir-me a nossa casa emprestada várias noites em Agosto para poder
estar à vontade com uma gaja que ele tinha engatado
no “Elefante Branco”. E eu, que como sabes sou muito amigo dele, não consegui
dizer-lhe que não. O combinado era eles saírem à meia-noite e meia. Imagina
que eu tinha de ir todas as noites fazer horas para o “Tamila”
mas, sabes como é, os amigos são para as ocasiões e ele estava tão
desesperado que eu não tive coragem. Agora por favor não vás contar nada à Mizú, senão desgraças o rapaz.” Passaram-se
entretanto duas semanas. Lutegarda lá tinha
acalmado os seus ciúmes, mas a pedra tinha ficado no sapato. Pelo sim pelo
não, nem sequer voltou a procurar falar com a Maria Zulmira, não fosse o
diabo tecê-las e ela não conseguir resistir à sua solidariedade feminina e
descair-se. O Conde de Redondo voltou à sua pacatez habitual. Só que, numa
manhã em que a Lutegarda procedeu a uma limpeza
mais profunda no quarto, descobriu debaixo da cama um lencinho branco sujo de
baton e com umas letras bordadas que diziam MIZÚ.
Como se costuma dizer, foi como se uma coisinha má lhe tivesse passado pelas
ideias, e sem pensar duas vezes, resolveu telefonar à sua amiga com um falso
pretexto. – “Olha lá, Mizú, já não nos vemos há que tempos,
mas ontem acho que cruzei na rua Luciano Cordeiro com um homem que parecia
mesmo o teu marido, e tive saudades de vos ver.” – “O meu
marido? Oh filha, não podia ser ele. O Honorato está há três meses na Suécia
a especializar-se no fabrico e na instalação de pára-raios.
Tu não calculas o que é ter a casa cheia daquela tralha toda. São pára-raios por todo o lado! Até estou a dormir no sofá.” Lutegarda emudeceu. Nem conseguia respirar. O filme
completo passou-lhe logo pela cabeça. – “Muito me contas, minha cabra. Já
percebi tudo. Dormes no sofá, mas eu faço-te a cama.” E desligou. Entretanto, já
passou outro Agosto sobre esta história. Mas até hoje, a Polícia Judiciária,
também vizinha ali na Gomes Freire, ainda não conseguiu descobri quem terá
matado a Maria Zulmira, na sua casa da rua Bernardo Lima, vítima de uma
violenta marretada dada com um pára-raios na
cabeça. Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 15 de Junho de 2025 Borda
D’Água do Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2019 |
© DANIEL FALCÃO |
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