A VIOLADA
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EM TOBAGO | Cris (Maria Cristina de Aguiar) A ALEGRIA
DAS PEDRINHAS | Peter Pan VÁ-SE LÁ SABER
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QUANDO SURGE OUTUBRO | Inspetor Boavida (…) BORDA
D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2018 |
A ALEGRIA DAS PEDRINHAS Peter Pan Johnny
despertou ao sabor da brisa da manhã e da maré que subia na areia da praia. Não lhe
ocorreu nada nesse lento acordar. Reclinou um pouco para cima o corpo deitado
e limitou-se a olhar em redor. Por fim fitou a linha do horizonte e a
imensidão de céu e de mar à sua frente. O murmúrio das ondas era um rumor
agradável e no zénite o Sol já ia alto. Onde estaria? Estranhamente não se
lembrava de nada, de onde vinha e quem era. Mas esse facto não pareceu preocupá-lo.
Era como se voltasse a ser criança de novo e recomeçasse os seus passos neste
mundo outra vez. Sentia-se leve e tranquilo e havia um bem-estar ali, naquele
momento, de que ele não se lembrava alguma vez ter sentido. Pôs-se de pé e
começou a caminhar, descalço, na areia da praia. Olhou de novo para todos os
lados, agora já completamente desperto. Do lado direito apenas o oceano,
primeiro o recife de águas rasteiras e de um azul marinho
brilhando em remoinhos à luz do Sol; mais ao longe orlando a costa, o azul escuro do mar profundo. Daquele lado e para a frente
e para trás, nada mais a não ser o Céu, o Sol e o Oceano. Johnny olhou então
para o lado esquerdo e viu uma paisagem difícil de descrever. As sensações
que perpassaram pelo seu ser foram igualmente estranhas de descrever; por um
lado essa impressão única de estar longe, muito longe de casa, onde quer que
ela fosse; outra era a de ter estado ali algures noutro tempo. Havia um
recorte de montanha vulcânica que se impunha por entre a densa vegetação um
pouco por todo o lado. Havia uma atmosfera tranquila, havia rumores de
pássaros e aves pelo ar no pano de fundo que era o rumor do oceano. Era como
se aquele local tivesse estado ali sempre à sua espera e Johnny tivesse
finalmente a oportunidade de ir ao seu encontro. Naquele momento, sem se
lembrar de quem era ou de onde viera, sentiu-se feliz. Não se lembrava de se
ter sentido feliz assim. Sem se dar conta um largo sorriso de bonomia
preencheu o seu rosto. Apesar de não saber o que fazia e como chegara ali, o
seu estado de espírito era de total apaziguamento. Não havia passado nem
futuro. E no entanto lembrou-se do medo, da insatisfação, das dúvidas que com
ele sempre viveram. Mas ali nada disso havia, sabia que podia confiar naquele
Deus, na beleza das coisas, na alegria que transbordava dentro de si. Sempre
fora um ser de emoções, mas a sensibilidade trouxera o medo também, o
defender-se de tudo o que lhe podia fazer mal nunca lhe permitira realmente
libertar-se. Amava o estar vivo e ainda o poder partilhar com os outros essa
alegria. Finalmente
chegara ao topo da montanha. E o que para Johnny era simplesmente mais
desconcertante naquele lugar era a candura do estar, a inocência do olhar, a confiança
inabalável de sorrir. Johnny agachou-se por momentos, respirando levemente.
As ondas do mar subiam na areia molhada; havia uma infinidade de despojos
trazidos pela maré, entre os quais uma colecção
multicolor de conchas e pedrinhas. Johnny ajoelhou-se e começou a senti-las,
uma a uma, tal qual fossem pedras preciosas. Naquele momento, o mundo ficou
em suspenso e estava preso nas suas mãos. O Sol veio brincar e fez as
pedrinhas esvoaçarem num mágico cintilar. Johnny quis ficar ali para sempre,
como se fosse um pescador de pedrinhas. Poderia apanhá-las, escolhê-las, por
dias a fio, até, quem sabe, encontrar a pedra perfeita. Então deixar-se-ia
adormecer, como se lhe contassem uma história antiga de mil anos, do
princípio dos tempos e embalado pelo singelo rumor do oceano embarcaria
docemente rumo à eternidade. Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 1 de Junho de 2025 Borda
D’Água do Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2019 |
© DANIEL FALCÃO |
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