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O RAIO IMPIEDOSO!... | João Artur Mamede

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BORDA D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2018

 

 

O RAIO IMPIEDOSO!...

João Artur Mamede

Amanhecia o dia 13 de Novembro, do ano da desgraça, de 1.013.

Tenebrosa e vagarosamente, acercava-se a hora aprazada para a execução da sentença de morte, por decapitação, de mais um honesto e fiel camponês que não entregara, atempadamente, aos celeiros do Conde, uma avantajada parte das suas modestas e inférteis colheitas, amanhadas à custa do seu suor e dos restantes membros da humilde família, mulher e filhos.

A tempestade desabava, com vento de furacão e chuva torrencial, abrupta e caudalosa, empapando as vestes miseráveis do reduzido ajuntamento, arrebanhado mercê das ameaças dos algozes, assalariados pelo déspota detentor do condado. O mesmo acontecia, à andrajosa vestimenta do condenado, e às vestes de camurça luzidia, cor de corvo, de corte perfeito e enigmático, encimadas pelo capuz encharcado e amarrotado que encobria a identidade do executor, que mais parecia o D. Cabral, recebendo os convidados para o jantar do “Clube Sexta-Feira 13”, que se realizaria cerca de seis séculos mais tarde, nas imediações de Torres Vedras.

Protegido momentaneamente da intempérie, num “palanquim” improvisado no prolongamento posterior da plataforma de madeira trabalhada toscamente, sobre a qual se alinhava o sólido tronco de carvalho, esquadriado com rudeza para suportar o corpo esquálido do condenado, o meirinho assistia, com malévola espectativa, ao minucioso labor execrável, do grupo de sabujos coadjuvantes do carrasco titular.

A tempestade redobrava a sua fúria, tenebrosamente estrondosa, com colossais laivos de electricidade faiscante, que cruzavam os céus plúmbeos, em todas e nas mais estranhas e inconcebíveis direcções.

Quando o meirinho – eventual mestre-de-cerimónias – levou a mão à cintura, para erguer pelo cabo dourado e cravejado de pedras preciosas, a adaga com a qual sinalizaria a ordem de execução, e o verdugo levantou o machado terrífico, mantendo-o erguido à espera da ordem fatal, as forças da natureza, revoltosas e ameaçadoras, calaram-se e aquietaram-se por uma ínfima fracção de tempo, como que para dar realce ao dramático momento que se seguiria.

O meirinho fez um curto movimento erguendo a adaga, sinal para desencadear o suplício, e manteve o braço erguido, à espera que o machado fatal consumasse a execução. Mas quando a pesada e faiscante lâmina, impelida pelos braços vigorosos e musculados do carrasco, iniciava o seu monstruoso arco de morte, um intensíssimo e chispante raio de electricidade desceu do céu, dirigindo-se ziguezagueante ao ferro do machado que o atraía, e com enorme estrondo bifurcou, serpenteando para a reluzente lâmina da adaga imóvel, fazendo com que os dois corpos atingidos pelo faiscante fogo da tormenta, sofressem uma rápida e violenta ignição, transmitindo o crispante bailado das labaredas, ao madeirame dos improvisados palanques. 

Subitamente, a tremenda trovoada extinguiu-se como por encanto.

O povo, por momentos atónito e aparvalhado pelo insólito da situação, ficou mudo e estarrecido, mas logo se apercebeu da magnitude da situação. E rebentou em aplausos ao sentenciado, que a força do raio que matara o carrasco, atirara para a borda do cadafalso, donde o povo festivamente o ergueu em triunfo, passeando-o em procissão pelas tortuosas ruelas do burgo.

 

Fontes:

Blogue Repórter de Ocasião, 29 de Junho de 2025

Borda D’Água do Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2019

 

© DANIEL FALCÃO