INTRÓITO

A VIOLADA | Abrótea

SORUMBÁTICO | Filipa Wilson

NOITE INTERMINÁVEL EM TOBAGO | Cris (Maria Cristina de Aguiar)

A ALEGRIA DAS PEDRINHAS | Peter Pan

VÁ-SE LÁ SABER PORQUÊ… | A. Raposo

JUNHO CHUVOSO | Rigor Mortis

INQUIETAMENTO NO PRINCIPADO | Inspector Moscardo

AS NOITES QUENTES DE AGOSTO | Búfalos Associados

RAPOSO | Zé

UM DEDÃO ESPECIAL QUANDO SURGE OUTUBRO | Inspetor Boavida

O RAIO IMPIEDOSO!... | João Artur Mamede

CONSOADA | Detective Jeremias

 

BORDA D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2018

 

 

CONSOADA

Detective Jeremias

Nico era tudo menos consensual. Na pequena vila, os literatos consideravam-no a versão século XXI das personagens infantis que povoam as obras Dickens, os intelectuais de esquerda viam-no como um ser livre com uma filosofia de vida peculiar, os radicais reformistas identificavam um pequeno Zé do Telhado e o padre Vianna – pároco emérito – do alto dos seus 98 anos, afiançava que Nico era a encarnação do demo. Os vizinhos escorraçavam-no com ameaças de pau de marmeleiro, as assistentes sociais diziam-se de mãos e pés “amordaçados” e, por fim, a guarda registava as queixas e redigia os relatórios de ocorrência.

E os pais? Sim, os pais, porque a Nico faltava-lhe a orfandade para entrar nos livros de Dickens. Os pais de Nico, entre a apatia fruto da toxicodependência, e as ausências na cadeia ou em programas compulsivos de reabilitação, ignoravam por completo a delinquência crónica do filho.

Eu não quero fazer juízos de valor e como o meu papel é relatar objectivamente a Consoada 2019 de Nico, posso assegurar que o rapaz tem 10 anos − conforme atesta o maltratado cartão de cidadão − e que é demasiado baixo e magro para a idade.

Nos centros urbanos o Natal começa em Novembro, com o apelo agressivo ao consumo desenfreado, no entanto nos locais mais provincianos, as decorações natalícias vêem a luz do dia no dia 8 de Dezembro, quando o feriado religioso conjuga a disponibilidade com o sentimento espiritual para este tipo de tarefas. Temos de tudo nas ornamentações, desde as luzes led Ikea nas vivendas de fim-de-semana dos lisboetas iludidos com a ruralidade, até aos pendões com o menino Jesus Redentor do pessoal religioso. Nos quintais, varandas, pátios, jardins e janelas competem bonecos de neve, meias nórdicas, luzes fundidas, presépios e desbotados pais natais trepadores. São precisamente estes últimos que estão na origem de uma ideia fabulástica na cabeça criativa de Nico.

Aqui, a tradição dita que a opípara ceia tenha lugar depois da inevitável missa do galo. Quase todos rumam à igreja matriz, em casa só ficam os artríticos crónicos e alguns forasteiros lisboetas. As mesas ficam aprontadas, os fritos e doces tradicionais ordenam-se sobre o aparador e os pratos quentes ficam resguardados no quente.

Nico engendra um esquema infalível. Escolhe as casas mais abastadas com varanda e surripia um fato e um saco de pai natal. Durante a ausência religiosa dos proprietários, o plano é entrar pelas varandas – a abertura de portas não tem espinhas para Nico – e encher o saco com tudo que lhe dê uma ceia de natal à maneira. O fato de pai natal é o disfarce ideal: Nico fica a salvo, não só da coscuvilhice de vizinhos impossibilitados de ir à missa, mas também do olhar de algum lisboeta serôdio. Dia 24 de Dezembro – meia noite, com a escada de alumínio atracada no braço direito, Nico dá início à operação Pai Natal. A primeira casa a atacar é a dos Custódios. Está frio, o delgado fato de papel tecido foi vestido sobre o blusão fica-lhe apertado e tolhe-lhe os movimentos. Nico pousa a escada, encosta-a à varanda e inicia a subida. Depois, num ápice, a escada foge lhe dos pés e cai em câmara lenta sobre a relva reluzente da geada. O cinto prende se nos arabescos de ferro forjado da guarda da varanda, deixando o rapaz dependurado. Nico evita a queda, mas enfrenta uma penosa imobilização forçada. Do mal o menos, dali a uma horita teria de render-se aos donos e assumir o erro.

Pena é que Nico desconheça que neste Natal os Custódios tenham decido celebrar a Consoada e o dia da Natal com a afilhada, em tempos emigrada na Suíça, e a habitar agora na vivenda mais moderna da vila − um mimo da arquitectura com um telhado de inspiração nórdica.

 

Fontes:

Blogue Repórter de Ocasião, 29 de Junho de 2025

Borda D’Água do Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2019

 

© DANIEL FALCÃO