TINÓNI!... TINÓNI!...
| Jartur VINGANÇA
NUMA MANHÃ DE FEVEREIRO | Inspector Mokada (…) BORDA
D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2018 BORDA
D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2019 |
VINGANÇA NUMA MANHÃ DE FEVEREIRO Inspector Mokada O meu velho
tio Ambrósio era muito chato. Implicava com tudo e por nada. Até os putos que
brincavam na rua, junto à sua janela, o incomodavam. Era raro o dia em que
não abria a janela para gritar com os pulmões que lhe restavam: “Pirem-se
daqui, catraios. Vão jogar à bola para outro lado e deixem-se de gritarias.
Arre, que uma pessoa nem consegue dormir uma sesta descansado. Qualquer dia
perco a cabeça e corro convosco ao estalo.” A embirração
com os miúdos era tal que, a partir de determinada altura, passou a guardar
aquele quarteirão da rua onde morava, impedindo-os de reinar. Ficava ali
especado, de mãos cruzadas atrás das costas, como se fosse um polícia de giro.
Os moços mais espigadotes ainda lhe faziam frente, teimando em imitar na
perfeição as habilidades de Figo e dos seus pares, até que a bola lhes
escapava e ia parar aos pés do velho Ambrósio... Eu cheguei a
contar dez bolas arrecadadas num canto do seu quarto, todas elas surripiadas
aos jovens aspirantes a génios dos relvados, que, nessa altura, o brindavam
com mimos pouco agradáveis, mas merecidos: “Devolva a bola, seu jarreta d’um
raio. Qualquer dia fazemos-lhe a folha, seu velho caduco d’uma figa.” O Ambrósio
enfurecia-se e remoía baixinho as piores pragas que lhe vinham à cabeça calva
e já vermelha de a tanto coçar. Certo dia, era
fevereiro – lembro-me como se fosse hoje –, o Ambrósio estava de sentinela à
porta de casa, pronto a dar caça aos que se atrevessem a fazer da rua um
parque de brincadeiras, um palco de tropelias e algazarras, um campo de
futebol. O tempo estava
frio e húmido e soprava um vento forte e agreste. Tinha chovido durante toda
a manhã e não se via vivalma na rua. O meu velho tio batia o dente, mas não
largava o seu posto. De súbito,
como se saíssem do denso nevoeiro que acordara a cidade e que continuava a
impedir que o sol inundasse as ruas, quatro moços caminhavam em direção a
Ambrósio. “Lá vem o bando dos quatro” – pensou o velho. Vinham de rostos
cobertos, um deles com um lenço que só lhe descobria os olhos, outro com uma
mascarilha, os outros com meias enfiadas na cabeça. Colocaram-se em fila
diante do Ambrósio e todos à uma sacaram de pistolas. O meu tio
tremeu que nem varas verdes. A cara encheu-se de uma palidez de pânico quase
transparente, que deixava ver as magras veias sem pinga de sangue. Os seus
dentes batiam mais do que o descompassado coração, o suor caía em bica pelas
faces gretadas, a boca secava, secava, secava, até que se abriu num grito
sufocado pelo medo. De olhos muito abertos e boca escancarada, Ambrósio gelou
quando um dos miúdos gritou: “Um, dois... disparar!”. Esguichos de
água fria encheram a boca de meu tio! Era terça-feira de carnaval... Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 6 de Julho de 2025 Borda
D’Água do Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2020 |
© DANIEL FALCÃO |
|
|
|