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MAGANA! | Rui Mendes BORDA
D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2018 BORDA
D'ÁGUA DO CONTO CURTO - 2019 |
OH, SORTE MAGANA! (Conto para Dezembro e 13º mês) Rui Mendes Nos anos
sessenta do passado século vinte, o Café Monte Carlo era uma instituição
quase nacional. Na época dos cafés verdadeiros baluartes da vida cívica e
social, o Monte Carlo era uma das formas de substituir os proibidos partidos
políticos, local onde se trocavam ideias e debatiam, modestos embora,
projectos de futuro. Nem os clubes desportivos lhe faziam sombra. Situado em
Lisboa, ali ao Saldanha, em plenas Avenidas Novas, era uma quase a capital do
país. Nunca conheci ninguém que o desconhecesse. Era normal, em Luanda, em
Paris, ou por onde quer que fosse, dois desconhecidos a quem não escapava
“aquela cara”, ficarem parados frente a frente de sorriso pendurado na boca,
trocando o diálogo: − “Monte Carlo?” – “Sim, Monte Carlo!” E um abraço
rematava aquele inesperado encontro de fiéis “montecarlistas”. Lembro-me de
uma reportagem publicada no Século Ilustrado da época que referia que, ao
tempo, havia em Lisboa 27 cafés, que era exactamente o número de tabernas só
no Bairro Alto, sinal claro de que o associativismo à volta de uma mesa se
fazia por extratos sociais bem diversificados. Claro que cada café tinha os
seus frequentadores habituais, mas o Monte Carlo era o mais abrangente. A
Brasileira do Chiado e o Nicola do Rossio tinham ficado reservados para os
intelectuais mais engravatados. Os cineastas da velha guarda continuavam no
Paladium na Avenida da Liberdade, enquanto que os mais modernos peroravam no
Vává na homónima de Roma. No Café Gelo, no Rossio, assentavam praça os
surrealistas, o Cesariny, o Pacheco e outros que, às vezes, aos domingos iam
de boné na mão pedinchar à saída da missa da igreja dos Mártires “esmolinha
para os Vizigodos pobres” e lá recolhiam algum magro pecúlio que por vezes
dava para um almocinho, devido à generosidade ignorante das fiéis senhoras. Mas no Monte
Carlo a “fauna” era mais variada. No corredor principal do café reuniam
muitas vezes os intelectuais de direita que se sentavam nas mesas da direita,
enquanto que os da esquerda, o Mário Castrim, o Abelaira, o Carlos de
Oliveira e outros, ficavam do lado esquerdo. Nas mesas da entrada paravam
frequentadores indistintos, como um tipo cujo nome nunca soube, mas a quem
chamavam o “Areias” e que se gabava de ganhar a vida a exportar sacos de
areia que ia roubar às praias da Caparica, e que vendia para a guerra da
Argélia. E quando lhe diziam que no norte de África havia muita areia,
respondia “talvez, mas essa para mim fica mais longe”. Havia também o
Margalho, proprietário rural alentejano que diziam ter ficado arruinado a
jogar no Estoril. Esse não poupava críticas aos militares: “São uns
preguiçosos. Não querem é trabalhar. Vejam lá se quando há desfiles na
Avenida eles marcham a subir? É sempre a descer que é para não cansar!” Outro
castiço frequentador, algo transtornado das meninges, era um que se
intitulava de espião russo com o nome de “Ku 14”, e que exibia um catálogo de
submarinos para vender a preços módicos. Mostrava ainda com orgulho o
sobrescrito do convite que recebera para a festa do Patiño em Cascais. Havia
também o Saraiva, salazarista convicto, que se dizia membro da Legião
Portuguesa, mas que fora engavetado pela Pide por engano na chegada do
Humberto Delgado a Santa Apolónia. Quando saiu, queixava-se: “Oh, sorte
magana, como tinha perdido o cartão, não consegui provar que tinha sido
mandado para ali pela Legião para provocar os manifestantes. Vá lá que não me
bateram, só me cuspiram na cara.” À esquerda da entrada passava-se para o
restaurante, onde por vezes aparecia para tomar chá um senhor baixinho e de
bigode, já de certa idade, muito bem posto e que ninguém sabia quem era. Numa
tarde estaria por ali o empresário teatral Vasco Morgado queixando-se
ruidosamente por os negócios não lhe estarem a correr nada bem. Consta que o
tal senhor ter-se-á às tantas aproximado e ter-lhe-á dito que se precisasse
de alguma ajuda poderia contar com ele. O Morgado, chateado com a vida e
julgando tratar-se de um maluco, despachou-o mal humorado. Dias mais tarde
veio a saber que aquele senhor era um tal Calouste Gulbenkian, residente ali
perto no Aviz Hotel, mas que nunca mais por lá apareceu. Creio que o Morgado
ainda foi procurá-lo no Hotel, mas o arménio já tinha partido para Londres.
Oh, sorte magana! No Monte Carlo
havia ainda à esquerda do trajecto que conduzia aos bilhares, um espaço
rebaixado de alguns degraus, só com mesas de café, a que alguns chamavam de
“aldeia dos macacos”. Era o espaço da “plebe”. E era aí que habitualmente
bebia a sua bica o protagonista da nossa narrativa. Nunca deve ter
havido tipo mais infeliz à face da terra. Começou logo no Registo Civil. O
padrinho queria dar-lhe o nome de Felizardo, mas a mãe que era muito
religiosa, quis chamar-lhe Nazareno por ele ter nascido numa 6ª feira Santa,
que por acaso era dia 13. Só que o pai era belfo e não pronunciava bem as
consoantes. Ainda por cima o oficial do Registo era surdo e, quando perguntou
o nome, o que julgou ouvir foi Azareno. E assim o nosso homem ficou Azareno
para o resto da vida. Começou aí o trágico destino que o acompanhou até ao
fim da azarada existência. Só porque a mãe não quis que ele fosse
Felizardo... É sabido que a
superstição atribuída ao 13 é devida em parte às sagradas escrituras, pelo
facto de na última ceia de Cristo terem estado 13 convivas à mesa (12
apóstolos mais o Mestre) e no dia seguinte, que era 6ª feira, Cristo ter sido
crucificado. Daí que a coisa se torne ainda mais aziaga quando o dia 13 calha
numa 6ª feira. O nosso amigo
Azareno tinha o destino traçado. Toda a vida foi perseguido pela maldição do
13. Foi num dia 13 que partiu uma perna ao cair por uma escada abaixo, num
dia 13 partiu um braço a andar de bicicleta e noutro dia 13 chumbou no exame
da 4ª classe. A 13 ficou desempregado, a 13 foi preso nunca ninguém soube
porquê. Num dia 13 casou, noutro dia 13 divorciou, às vezes nem tudo corre
mal. A mãe teve 12 filhos antes dele, mas vieram a falecer todos ainda
crianças. Ele, apesar de ser o décimo terceiro, incrivelmente escapou. Para
agradecer a mercê quis ir a pé a Fátima no 13 de Maio, mas ainda não tinha
andado 13 quilómetros quando foi atropelado por uma motoreta. Recuperou e
quis aderir à IURD para agradecer a mercê, mas desistiu porque lhe pediram um
dízimo de 13% do ordenado, despesa que não lhe dava jeito nenhum. Mas o pior
estava ainda para chegar. Num dia 13 de Dezembro, quando se preparava para ir
receber pela primeira vez na vida o 13º mês, foi esmagado por um autocarro da
carreira 13, ali junto à estação de Campolide. Parece que terá dito à hora da
morte: − “Morro sem nunca na vida ter recebido o 13º mês... Um azar
nunca vem só". Os amigos,
parceiros da bica no Monte Carlo, consternados pela morte do Azareno, únicos
herdeiros que ele tinha nesta vida, foram comovidos à polícia recolher a
roupa do sinistrado e, num bolso das calças, encontraram uma cautela da
lotaria que, para espanto e gáudio de todos, veio a ser premiada com o
primeiro prémio da lotaria do Natal desse ano. O “balúrdio” deu para pagar o
funeral, para uma grande farra que quase fez fechar o Monte Carlo, para
aquecer alguns bolsos, e ainda deu para uma lápide no cemitério do Alto de S.
João gravada com uma frase que o Azareno uma vez deixara escrita num
guardanapo de papel: “Eu sei que a sorte um dia virá”. Oh, sorte
magana! Fontes: Blogue Repórter de
Ocasião, 10 de Agosto de 2025 Borda D’Água do
Conto Curto, Edições Fora da Lei, Ano de 2020 |
© DANIEL FALCÃO |
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