Publicação: “Público” Data: 18 de Junho de 2017 Campeonato Nacional 2017 Taça de Portugal 2017 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2017 SOLUÇÃO DA PROVA Nº 4 (PARTE I) O FAQUEIRO DA VISCONDESSA Autor: Búfalos
Associados – “Lembro-me bem,
– disse Garrett – que havia lá em casa um romance que o trisavô Leopoldo
trouxe de Paris nos princípios do século XX e cuja leitura era proibida aos
mais jovens por ter passagens algo picantes, e ser considerado um manifesto
de revolta social. Era "Le Journal d'une Femme de Chambre", de um
escritor chamado Octave Mirbeau. Verdade, tia Laurinda?" – "É sim,
Francisco. Acresce que o teu bisavô Henrique dizia que o romance assumia
ainda uma clara posição anti-racista e havia sido publicado durante uma época
agitada da sociedade francesa, por causa da violenta crise do caso Dreyfus,
um judeu capitão do exército francês que sofrera uma vergonhosa condenação
baseada em dados que, forjados com claros objectivos anti-semitistas, o
acusavam de traição. Mirbeau inventou uma criada de quarto de nome Célestine
que escrevia num diário as suas desventuras enquanto empregada em casas ricas
da burguesia rural francesa, e nele fazia uma feroz crítica às atitudes
imorais e reprováveis dos patrões. É muito curioso o paralelismo com esta
história de uma empregada do teu bisavô Henrique chamada Celestina e que
escrevia um diário em que, à sua maneira, também zurzia os Viscondes que em
tempos tinha servido. Mas vamos a saber: tens resposta para o que te
perguntei?" – "Tia,
comecei por completar o texto com a pontuação que a Celestina omitiu, para
perceber o que se passou. E cheguei a uma primeira conclusão: os
acontecimentos relatados tiveram lugar na primeira terça-feira do mês de
Outubro do ano de 1910. Ora há outra personagem, o José, que diz que nessa
tarde se festejava a proclamação da República, e como os polícias confirmaram
a veracidade de todas as declarações, podemos concluir que tudo se passou no
dia 5 de Outubro de 1910." – "Não te
precipites." – comentou Laurinda – "Não podes deixar de confirmar a
data num calendário perpétuo. E, se o fizeres, verás que a primeira
terça-feira de Outubro desse ano foi no dia 4 e não no dia 5." – "Caspité!
Está apanhado o mentiroso! A polícia disse que quem faltasse à verdade seria
provavelmente o ladrão e a Celestina diz saber que alguém mentiu. Logo tudo
aponta para a culpa do José, que assim mentiu. Aliás, um pouco à semelhança
do romance, em que o ladrão das pratas parece ter sido o empregado
Joseph." – "Segundo
erro, meu filho. Se clicares na net PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA EM LOURES, que é
onde a coisa se passa, verificarás que, sem qualquer dúvida, naquela
localidade, como noutras, foi no dia 4 e não no dia 5 que a Republica foi
proclamada em Loures. Por volta das 15 horas, a população convocada por
líderes locais reuniu-se na zona central para proclamar e festejar a
implantação da República, mesmo ignorando que em Lisboa só na manhã do dia
seguinte é que seria feita a proclamação oficial. Mas foi no dia 4, na
varanda da sede do município de Loures, que foi feita a proclamação e a
bandeira verde e vermelha foi hasteada. É um facto histórico. Portanto, para
já, o José pode ter falado verdade." – "Tia, agora
fiquei baralhado. Se a polícia confirmou o que todos disseram, como é que a
Celestina pode dizer que alguém mentiu?” – "Francisco,
aí é que está a chave do problema. Lembras-te de eu ter dito que este texto
era um verdadeiro problema policial? Ora uma das regras do policiarismo é a
de que o narrador não pode mentir. Aqui a Celestina é a narradora, logo não
pode mentir. E ela afirma saber que alguém mentiu. A Celestina não tem
possibilidade de ter averiguado nada sobre as afirmações dos outros. Mas a
polícia confirmou, e concluiu que todos falaram verdade incluindo ela. Só que
ela não contou tudo e aí faltou à verdade, ou seja, mentiu. Lembra-te de que
ela nem conta tudo nos seus escritos com medo que o José os possa ler. A
Celestina quando diz saber que alguém mentiu, só pode referir-se a ela
própria, pois de si sabe ela bem. Na verdade, não mentindo, está a assumir
que mentiu. Percebes agora que foi ela a ladra?" – "Tia
Laurinda, já percebi tudo. A polícia confirmou tudo o que foi dito, mas
apenas o que foi dito. Foi o erro que cometeu. Os outros suspeitos puderam
apresentar testemunhas que confirmaram as suas afirmações. O José desde a
hora do almoço, a Alzira desde as duas horas, e o Mateus em Pintéus,
estiveram sempre acompanhados. Só a Celestina não tem alibi. A Gertrudes terá
confirmado que de facto lhe tinha emprestado a chave para ela lá ir a casa,
que tudo terá ficado arrumado, só que não houve ninguém que afirmasse que ela
não terá escondido lá em casa um saco contendo o faqueiro de prata roubado
aos patrões. De todos, só a Celestina terá estado sozinha naquela
tarde." – "Sozinha
não, Francisco, a rapariga esteve muito bem acompanhada com o valioso
faqueiro da Viscondessa. E ainda não sabes tu o melhor da história. Nas
coisas da falecida Celestina apareceu, junto com o diário, uma saca de
serapilheira atada com uma corda, que continha o belo faqueiro que a rapariga
nunca se atreveu a vender com medo de ser apanhada. O teu bisavô ainda tentou
encontrar familiares dela a quem entregar o espólio da rapariga, mas sem resultado.
Os Viscondes já tinham morrido em Espanha em acidente de viação. O avô acabou
por guardar em lugar seguro aquilo a que ele, republicano de gema, chamava
triunfante "o tributo da aristocracia". Acontece que agora quem o
tem sou eu e quando morrer ficará para ti. Nunca ouviste dizer que
"ladrão que rouba ladrão..." –
"Tem cem anos de perdão!" – atalhou Garrett – "Mas com os
atrasos que hoje tem a justiça... pode até alargar-se o prazo." |
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©
DANIEL FALCÃO |
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