Publicação: “Público”

Data: 5 de Março de 2017

 

 

Campeonato Nacional 2017

Taça de Portugal 2017

 

Provas

 

 

Parte I

1

Parte II

 

 

Parte I

2

Parte II

 

 

Parte I

3

Parte II

 

 

Parte I

4

Parte II

 

 

Parte I

5

Parte II

 

 

Parte I

6

Parte II

 

 

Parte I

7

Parte II

 

 

Parte I

8

Parte II

 

 

Parte I

9

Parte II

 

 

Parte I

10

Parte II

 

 

 

 

CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2017

 

PROVA Nº 2 (PARTE I)

 

TRUFAS E MORTE

Autor: Rigor Mortis

 

O jantar estava magnífico. Edgar, o mordomo, fora impecável a organizá-lo, como sempre. Na sumptuosa sala de jantar da mansão ribatejana do patrão, de imponente pé direito, a sólida e longa mesa rectangular de mogno estava luxuosamente posta, a ementa era excepcional, os vinhos espectaculares, o serviço inexcedível.

A mansão passava o ano fechada, isolada, a uns três quilómetros da aldeia mais próxima e a uma hora de automóvel de Lisboa, já que a família só lá ia para o jantar de aniversário de Jeremias, o seu proprietário. Semana e meia antes o Edgar e vários criados tinham ido até lá, para limpar tudo cuidadosamente e preparar a casa para esse jantar, como faziam todos os anos. Nesses dias estivera sempre gente em casa, mesmo à noite, com excepção do domingo anterior à tarde, dois dias antes do jantar. Só o Jeremias, os seus três filhos e o Edgar tinham a chave da mansão. Os dois filhos mais velhos, Alberto e Sofia, tinham lá ido durante as limpezas, separadamente, mas não se tinham demorado mais do que uma ou duas horas. Catarina, a mais nova, detestava a mansão.

Jeremias, sentado ao topo da mesa, nem ligava a isso. Não apenas porque já a tal estava habituado, como porque a sua natureza autoritária e egocêntrica nem outra coisa alguma vez toleraria.

À volta da mesa, mais nove pessoas. À direita e à esquerda do Jeremias, as suas duas irmãs cinquentonas, por quem ele não sentia mais que uma leve condescendência. A seguir, os respectivos maridos, imprestáveis na sua opinião. Depois, os dois sobrinhos, por quem Jeremias não sentia a mais leve simpatia. E no outro extremo da mesa os seus três filhos, Alberto, Sofia e Catarina, a meio da casa dos vinte anos, tal como os primos.

Jeremias casara tarde, bem dentro dos cinquenta, com uma linda mulher trinta anos mais nova, Genoveva. Três filhos em três anos, todos com gravidez muito complicada, tinham dado cabo da saúde da esposa, que viria a falecer ao dar à luz Catarina. Esses três anos tinham sido vividos na mansão ribatejana, tal como os doze seguintes, até que Jeremias se mudara para Lisboa.

Numa acusação semiconsciente, Jeremias desprezava os filhos, que tratara sempre com uma rigidez e aspereza impossíveis de suplantar. O desprezo de Jeremias pelos filhos era retribuído com o ódio destes, que não esperavam outra coisa senão a sua morte e a correspondente herança, sabidamente enorme. Não obstante, as três crianças foram crescendo, revelando-se inteligentes e hábeis de mãos. Num ambiente de todo sem características familiares, viraram-se para os estudos – Alberto licenciou-se em Direito, Sofia em Engenharia, Catarina em Economia – partilhando permanentemente um gosto acentuado por tecnologias, sobretudo electrónicas. Alberto e Sofia tinham-se distinguido nos desportos, durante o liceu e a universidade, Catarina fora sempre franzina e muito feminina, cuidada na sua aparência ainda que independente, afirmativa, determinada e de personalidade forte. Sofia, de muito maior estatura, era esbelta e musculada, consequência da intensa prática desportiva, nada dada a valorizar a sua feminilidade.

O ambiente era muito pesado. Como sempre, nos jantares de aniversário do Jeremias, única altura em que este se dignava conviver com a sua família.

Magnífico consommé! O Edgar levou a cozinheira a exceder-se!” O pensamento sobrepunha-se ao pano de fundo do ódio pelo pai.

A conversa à volta da mesa, esparsa, centrava-se nos elogios ao repasto.

– Sinceramente, Edgar, este é o melhor jantar de sempre! – elogiou uma das irmãs do Jeremias.

– Podes crer! – corroborou o cunhado.

Lá isso é… E desta vez ele abriu mesmo os cordões à bolsa… Risoto de trufas brancas com camarão!... Só este prato deve ter custado mais de mil euros… Que lhe terá passado pela cabeça?! Será que ele desconfia de alguma coisa?... De mim, ou dos meus irmãos?...

O prato de carne, rosbife com puré de alcachofras, estava simplesmente divinal.

– Que maravilha! – comentou um dos sobrinhos do Jeremias, logo secundado por todos os outros convivas. Todos menos o Jeremias, claro, silencioso e soturno como sempre.

Ai estas tias… Vê-se bem que nasceram e cresceram no século passado… É só rendas, folhos e receitas… Hoje não sobreviveriam na adolescência! Seriam levadas pelo primeiro que lhes aparecesse à frente! Felizmente, uma mulher hoje é muito mais que roupas e culinária!

A sobremesa excedeu tudo o que lhe tinha antecedido. Trufas de chocolate recheadas com maracujá, deliciosas, crocantes mas que se derretiam simplesmente na boca. Mais uma vez, os elogios.

Mais trufas, agora doces… É o momento!

O disparo sobressaltou todos à volta da mesa. Sangue apareceu na face do Jeremias, brotando do buraco que se abrira do seu lado esquerdo. Imóvel durante uns segundos, com a cabeça encostada ao espaldar da cadeira, o tronco do Jeremias curvou-se lentamente para a frente, caindo desamparadamente sobre o prato da sobremesa, esmagando os restos das trufas de maracujá.

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O inspector João Velhote, de pé em cima da mesa de jantar, com os pendentes mais baixos do imponente lustre que iluminava a sala a centímetros da cabeça, mirava com curiosidade não disfarçada a engenhoca que descobrira aí camuflada, fixa ao seu eixo central. Uma pequeníssima pistola cromada estava habilmente disfarçada pelos ramos do lustre. Ao gatilho estava preso um fio metálico, com a outra extremidade soldada a um êmbolo, semi-envolto por um solenóide colado de lado na coronha da arma, ligado a uma pequena pilha através de um minúsculo circuito electrónico. Uma pequena antena era visível na base do conjunto. A pistola, de um único tiro, estava directamente apontada à parte superior da cadeira onde Jeremias estivera sentado ao jantar.

Velhote tinha tido a inspiração de procurar no lustre quando o seu ajudante lhe levara uma outra engenhoca, descoberta no caixote do lixo, na cozinha, que era manifestamente um emissor de sinais electrónicos de reduzidas dimensões, aparentemente um comando de porta de garagem.

Dos interrogatórios, João Velhote ficou a saber de todos os pormenores quanto à mansão, à sua preparação para o jantar, ao decorrer deste e ao que era relevante relativamente a cada um dos membros da família. Facilmente entendeu que Jeremias não era estimado por nenhum deles. O único que tinha consideração por ele era o Edgar, mordomo de sempre. As irmãs e as respectivas famílias directas suportavam-no apenas, já que não tinham que conviver com o Jeremias senão uma vez por ano. Os filhos odiavam-no claramente. Os três tinham estado em Lisboa nas últimas semanas, mas só se tinham encontrado no domingo anterior, almoçando juntos. Nessa tarde Alberto e Sofia tinham ido ver um jogo de râguebi da antiga equipa do Alberto, mas Catarina preferira ir ao cinema.

O inspector João Velhote estava de mau humor. O seu tique habitual, mordiscando o lábio superior e expondo os incisivos inferiores por baixo do bigode grisalho, manifestava nesse momento consternação e preocupação. Tinha todas as razões para crer que sabia quem tinha sido o assassino, mas prová-lo iria ser muito complicado. A pistola, a engenhoca associada e o comando de garagem, que se tinha verificado estarem limpos e sem quaisquer impressões digitais, eram as suas únicas pistas materiais. Descobrir onde e quem os teria adquirido iria ser o cabo dos trabalhos. Encontrar alguém que tivesse visto um dos familiares do Jeremias ir à mansão noutra altura que não àquele jantar seria igualmente muito difícil.

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E você, caro Leitor? De quem suspeita?

Não basta um simples palpite… Analise as circunstâncias e junte as pequenas evidências, justificando a sua resposta com plausibilidade.

 

© DANIEL FALCÃO