CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2015
PROVA Nº 1 (PARTE I)
MORTE NOS CÉUS
Autor: Rigor Mortis
Enfiando o saco de viagem na bagageira, o inspector João Velhote olhou à sua volta. O avião não
estaria mais que meio cheio, o que era surpreendente, numa viagem de Miami
para Lisboa, naquela época do ano. Antes assim! No fim de uns dias de férias
para descontrair, tinha receado encontrar no regresso um avião cheio de
ruidosos e ebulientes veraneantes…
Talvez por deformação profissional,
observou com atenção os passageiros mais próximos do seu assento, na coxia
esquerda da primeira fila do bloco central da turística. À direita, depois de
uma cadeira vazia, uma mulher na casa dos quarenta, com uma jovem adolescente
tremendamente bronzeada. À esquerda um casal, à conversa com outro casal
sentado logo atrás, todos na casa dos vinte. Atrás deles e atrás de si, duas
filas vazias.
Sentou-se, colocando o livro que
escolhera para ler durante a viagem na bolsa à sua frente, enquanto ia
ouvindo os passageiros à sua esquerda, sem prestar grande atenção. Dois
jovens casais em busca de aventuras… Provavelmente de vários tipos… Bom,
talvez estivesse a exagerar, mas algumas indirectas
picantes das jovens, manifestamente bem dispostas,
dirigidas ao homem sentado na coxia logo ao seu lado, bem parecido e de porte
atlético… Sobretudo da que estava sentada na coxia da fila atrás da sua…
Ignorando-os, deixou-se afundar na
sua cadeira e fechou os olhos…
…Acordou sobressaltado, ao som de uma
babel de vozes alteradas. Quanto tempo dormira? Olhou para o relógio e
surpreendeu-se ao notar que já tinham mais de quatro horas de voo. Lá se fora
o jantar…
– “Arrombem a porta! Está a sair
sangue por baixo da porta!”
Logo à frente, do seu lado esquerdo,
vários passageiros e duas hospedeiras acotovelavam-se junto à porta do
lavabo. Levantou-se da sua cadeira ao mesmo tempo que um passageiro metia o
ombro e forçava a porta do lavabo.
– “Quietos!” – gritou
– “Não entrem aí!”
Cedendo aos seus instintos
profissionais, afastou os passageiros da entrada do lavabo, surpreendidos
pelo seu grito, antes de qualquer deles lá entrar. E, empurrando um pouco
mais a porta, olhou lá para dentro. A cena era terrível. Uma mulher, sentada
na sanita mas totalmente vestida, com a cabeça caída sobre o peito e os
braços à frente dos joelhos, estava esvaída em sangue, com ambos os pulsos
profundamente cortados. O pequeno lavatório estava cheio e o chão coberto do
sangue dela, mas via-se o cabo de uma faca sobre um dos pés. Era a jovem que
se tinha sentado na coxia da fila de trás, à sua esquerda.
Com a ajuda do comissário de bordo e
das hospedeiras, lá conseguiu que todos os passageiros se sentassem,
visivelmente angustiados e inquietos. João Velhote identificou-se como inspector da polícia e aproveitou para fazer de imediato
algumas perguntas.
As hospedeiras confirmaram que a
porta do lavabo estava trancada por dentro, tendo sido alertadas por um
passageiro de que assim estava há mais de meia hora. E sim, de facto o jantar
já tinha sido servido há um grande bocado, bem antes de se terem reduzido as
luzes no interior do avião.
– “Que raio de sítio para se
suicidar”, comentou uma delas.
O companheiro da jovem morta, Sérgio,
disse-lhe que a relação entre ambos não ia muito bem. Durante toda a estadia
nas Bahamas, a companheira, Mónica, tinha-se mostrado muito esquiva em
relação a si, apesar de ter sido ela a sugerir que os quatro fossem aí passar
uma semana. Ele interpretara essa sugestão da Mónica como uma oportunidade
que ela estaria a criar para intensificar a relação entre os dois, muito
ardorosa no passado recente. Claro que se não tivesse sido a Anabela a pagar,
nem ele nem a Mónica teriam possibilidade de o fazer, já que o que recebiam
dos empregos que tinham não dava para isso.
– “Disse-lhe ontem à noite que seria
melhor acabar a relação, se essa era a sua vontade”, concluiu.
A outra jovem do grupo, Anabela,
muito chorosa, confirmou que a ideia daquelas férias tinha sido da Mónica,
numa espécie de despedida de solteira, já que a Anabela e o Roberto, o jovem
que a acompanhava, se iam casar dentro de algumas semanas. Tinha sido uma
excelente semana de férias. Sim, bastante cara, mas as despesas não eram um
grande problema para ela, pois o pai, milionário, dava-lhe uma mesada muito
generosa, mais que suficiente para tal.
O Roberto, o passageiro que tinha
arrombado a porta do lavabo, disse não estar muito surpreendido, já que a
Mónica lhe tinha confessado estar a viver uma fase muito má na sua relação
com o Sérgio. Era estagiário numa empresa do pai da Anabela, de quem estava
noivo, e ansioso pelo casamento. A Mónica? Apenas amigos de há algum tempo.
Tinham namoriscado no início, mas deixara-se disso quando conhecera a
Anabela.
O comissário de bordo veio dizer ao
João Velhote que o avião ia começar a sua descida para Lisboa e que,
portanto, todos tinham que se sentar e apertar os cintos. Referiu-lhe que o
comandante já tinha contactado Lisboa para lhes dizer ter ocorrido um
suicídio a bordo.
– “Ainda bem”, disse João Velhote,
“espero bem que seja a polícia a vir a bordo.”
– “A polícia? Bom, suponho que sim,
mas não me parece que haja muito a investigar, já que se tratou claramente de
um suicídio.”
– “Diz você”, retorquiu o inspector, mordiscando o lábio superior e expondo os
incisivos inferiores por baixo do bigode grisalho, como sempre fazia quando
mentalmente resolvia algum caso, “mas parece-me bem que não. Acho que foi um
homicídio, e a polícia terá bastante trabalho a analisar a cena do crime,
para encontrar as provas necessárias. Mas encontrá-las-á decerto e confirmará as minhas suspeitas de quem foi o
assassino.”
–“Homicídio? Como, se a porta do
lavabo estava trancada por dentro e só o cadáver lá se encontrava?!”
– “Custa-me a acreditar que um
comissário de bordo experiente como você pense assim…” disse o inspector João Velhote com um sorriso maroto.
Perguntas:
Suicídio? Ou homicídio?
De que é que o inspector
João Velhote suspeitava?
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