Publicação: “Público”

Data: 2 de Agosto de 2015

 

 

Campeonato Nacional 2015

Taça de Portugal 2015

 

Provas

 

 

Parte I

1

Parte II

 

 

Parte I

2

Parte II

 

 

Parte I

3

Parte II

 

 

Parte I

4

Parte II

 

 

Parte I

5

Parte II

 

 

Parte I

6

Parte II

 

 

Parte I

7

Parte II

 

 

Parte I

8

Parte II

 

 

Parte I

9

Parte II

 

 

Parte I

10

Parte II

 

 

 

 

CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2015

 

PROVA Nº 7 (PARTE I)

 

SANGRIA DESATADA

Autor: Búfalos Associados

 

A vida do arquitecto Bairrada não se conta em duas palavras. Quando, terminado o curso, decidiu ausentar-se do país para não cumprir o serviço militar, pois era contrário à guerra colonial que entretanto começara em Angola, a sorte sorriu-lhe. Passando fronteiras e agruras, foi viver para a Suíça, onde já trabalhava um tio que o orientou numa carreira que em breve correria sobre rodas. Através da importante empresa onde trabalhou, dirigiu a equipa que construiu o pavilhão da Suíça na Expo70, em Osaka no Japão, e nunca mais esqueceu o ano da sua grande arrancada para o sucesso. 

O Japão, onde se deslocava com frequência no cumprimento da profissão, exerceu sobre ele um irresistível fascínio. O pavilhão da Suíça na Expo foi um enorme êxito e os convites não tardaram. Foi viver para o Japão, e em poucos anos um país nessa época em franco desenvolvimento tornou-o arquitecto afamado e senhor de uma bela fortuna. Bairrada disse sempre que a sua grande paixão era o Japão, a sua cultura, as paisagens e a simpatia dos seus habitantes. Mandou vir da Suiça a senhora com quem entretanto casara e de quem viria a ter um único filho, o Alvarinho, já nascido no Japão. O rapaz partilhou sempre com o pai o amor pelo Japão e pela sua civilização, foi lá que estudou e fez um curso de engenharia. Já retirado, Bairrada enviuvou e teve de regressar a Portugal para resolver problemas de heranças da mulher. Foi viver numa moradia no Estoril e Alvarinho acompanhou o pai, embora contrariado. As relações entre os dois deterioraram-se bastante e entretanto o pai começou a dar sinais de sofrer de perturbações mentais. Alvarinho receava ser prejudicado no testamento do pai, e mantinha-se atento porque sabia que o pai guardava uma enorme fortuna em ouro, jóias e dinheiro num cofre de que só ele sabia o segredo. Depois de reformado, o homem que sempre tinha sido afável e generoso, tornou-se agressivo, chegando mesmo a agredir o pessoal que só o suportava por interesse. Queixava-se de todos e dizia que estava a gastar o que podia da fortuna e iria suicidar-se só para lixá-los.

No Estoril a moradia tinha no rés-do-chão um grande hall (que comunicava com o piso dos quartos por uma vasta escadaria), um salão, a sala de jantar, a cozinha, sanitários e os alojamentos do pessoal: o mordomo, Palmela de seu nome, a cozinheira Ermelinda, e um criado chamado Borba. No piso de cima ficavam os quartos do pai e do filho, com as respectivas casas de banho privativas, e um escritório. Era no quarto que o Bairrada guardava o tal cofre onde toda a gente sabia haver importantes riquezas.

Foi numa manhã de domingo que a tragédia estalou naquela casa. O mordomo, que tinha ido ficar nessa noite em casa de uns primos, regressou pelas sete e meia da manhã e estranhou que a porta da rua não estivesse fechada com quatro voltas como todos a deixavam sempre de noite. Ao entrar foi surpreendido por uma torrente de água misturada com sangue que corria em cascata pela escadaria abaixo. À polícia declarou: -"Alarmado, deixei a porta da rua aberta e subi pela escada acima, chapinhando na água que vinha da casa de banho do sr. arquitecto. As portas estavam abertas de par em par e ele jazia morto, despido, com a cabeça completamente submersa na banheira, com a água quente continuamente a correr e a transbordar, misturada com sangue que era bem visível ter tido origem em cortes em ambos os pulsos. Gritei várias vezes a chamar pelo sr. engenheiro, mas ninguém me respondeu. Percebi então que não estava mais ninguém em casa, não toquei em nada, só fechei as torneiras da água e desci para chamar a polícia do telefone da cozinha".

Dos apontamentos da polícia retiremos as notas essenciais:

1- A cozinheira e o Borba não ficaram em casa naquela noite pois, como sempre acontecia, no domingo estavam de folga e tinham-se ausentado depois do jantar de sábado em que só serviram o sr. arquitecto. O mordomo também saiu por essa altura. Alibis confirmados pelas famílias.

2- A autópsia confirmou a morte entre as cinco e as seis da manhã, por enorme perda de sangue, mostrando não ter chegado a haver afogamento. Mergulhado na banheira foi encontrado um afiado "x-acto".

3- Entre o "lago" da água proveniente do andar de cima e a porta da rua, eram visíveis pegadas de um par de sapatos de homem na direcção da saída, as quais aliás o mordomo confirmou ter visto ao entrar de manhã. Continuavam no exterior e perdiam-se na relva.

4- O Alvarinho chegou ao meio-dia e ao princípio disse que não podia declarar onde passara a noite para não prejudicar a reputação de uma senhora casada e de alta posição mas, confrontado com a gravidade da situação, acabou por dizer. A senhora mais tarde interrogada, após muitas hesitações, pediu rigorosa discrição e declarou ter estado com ele até às seis horas da manhã.

5- No quarto do arquitecto foi encontrada uma folha A4 escrita à mão: "deixo esta vida e não levo saudades vossas quem for esperto encontrará no cofre tudo o que tenho a chave está lá o segredo é à esquerda o de cima para cima e em baixo sobe um depois em cima desce um e os quatro de baixo sobem depois em cima desce um e em baixo só sobem dois depois só em baixo sobem quatro em cima nada desce". No quarto havia sinais de que alguém com sapatos molhados andara por ali.

6- O cofre estava aberto e vazio. O segredo tinha ainda registados os quatro dígitos que permitiam a abertura. A chave estava na fechadura. Constava que o arquitecto tinha feito recentemente um testamento em que deixava grande parte da fortuna aos bombeiros.

7- Impressões digitais só dos habitantes da casa. Foi perguntado a todos se tinham ideia do segredo do cofre, mas sem resultado. Palmela falou na possibilidade de uma data importante.

O inspector Garrett gostava muito de contar esta história que ele considerava um teste à argúcia e aos conhecimentos dos seus alunos. Aqui fica o desafio: como se terão passado as coisas e como foi que o cofre apareceu aberto?

 

© DANIEL FALCÃO