Publicação: “Público” Data: 5 de Abril de 2015 Campeonato Nacional 2015 Taça de Portugal 2015 Provas
|
CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2015 PROVA Nº 3 (PARTE I) TEMPICOS E A MÚSICA DE ÁGUA FURTADA Autor: A. Raposo &
Lena Se quiserem saber onde
actualmente mora Tempicos, tomem nota: Rua do Norte, Bairro Alto, Lisboa,
numas águas furtadas, com vista para o rio. Uma casa às vossas ordens. É para lá que leva de
quando em vez, as suas amigas do peito, para lhes servir uma amarguinha ou se
preferirem observarem, da janela, o movimento dos navios. Para embalar o tempo
ouve-se uma misteriosa música de fundo de um infindável disco de jazz. Música
de água furtada. Afirma Tempicos. Música que usa para criar um clima
romântico susceptível de derrubar corações indecisos. Tempicos continua um
indesmentível pinga-amor. Nos dias de verão o sol
entra pela janela e aquece o quarto, iluminando a velha colcha de patchwork
na cama de ferro. A suster a parede de fundo
um velho psiché – fin de siècle – o qual tem em cima uma estranha moldura
dourada, composta por um pano bordado a ponto cruz com umas letras sem nexo.
Um enigma que nenhuma senhora, até hoje, das que lá tem ido a casa, decifrou.
Nem mesmo a arguta dona da pensão Kumbala, uma velha amiga e personagem de
outras histórias, a Fatinha. São umas misteriosas 15
letras: RAECMOMSIEIOOPT. A malta da Judiciária
tinha-lhe oferecido o quadro quando se reformou. Um enigma. Ele achou piada. Aos pés da cama uma
estante com a colecção completa dos policiais Vampiro, para as noites de
insónias. Encimando a estante um óleo de Egon Schiele, um dos seus pintores
preferidos. Comprara-o em Paris. Uma pechincha, num antiquário falido, em Montmartre,
no meio de outras velharias. A tela era uma obra, datada (1913) e assinada,
conhecida como “declined female nude
with legs spread apart”. Não seria de admirar se
lhe oferecessem um milhão de euros, se a pusesse à venda. Comprara-a por 100
ou 200 francos, quando da sua passagem última pela cidade luz. Tempicos vive sozinho – é
solteiro e bom rapaz – mas acontece que anda sempre bem acompanhado. Ao seu
lado na cama, está a sua mais recente amiga. Conheceu-a debaixo de um toldo
na praia da Rocha, este Verão e acabou vindo com ela no seu velho
“studebaker” descapotável, dos anos 50. Um carro antigo, recuperado e muito
bem tratado. Amarelo gema de ovo. Lindo de morrer. Ela veio todo o caminho de
cabelos louros ao vento. De nome indizível – rapariga do leste – mas que
traduzido será Carla Vanessa. Um nome que lhe fazia
lembrar outros Carnavais. A pequena era estudante
Erasmus, na área das “letras”. Tudo a ver com Tempicos. Interesse pelos
clássicos e pelos copos. Fifty-fifty. Na mesa-de-cabeceira um
cartucho com pastéis de Belém. Os originais. Sempre dão jeito quando a noite
é longa e a fome aperta. Um entretém de boca. A conversa entre eles era
a mais elevada. Discutiam o sexo dos anjos, um tema sempre quente e actual. E enquanto a conversa se
alonga pela noite dentro e a música de fundo os embala, a nossa história se
esfuma, apetece perguntar aos amigos leitores: – Será que Tempicos virá a
ser um homem rico se puser o quadro do Schiele à venda na Christie´s? – Qual a frase enigmática
que está bordada a ponto cruz no quadro sobre o psiché? |
||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
©
DANIEL FALCÃO |
|