Publicação: “Público”

Data: 4 de Outubro de 2015

 

 

Campeonato Nacional 2015

Taça de Portugal 2015

 

Provas

 

 

Parte I

1

Parte II

 

 

Parte I

2

Parte II

 

 

Parte I

3

Parte II

 

 

Parte I

4

Parte II

 

 

Parte I

5

Parte II

 

 

Parte I

6

Parte II

 

 

Parte I

7

Parte II

 

 

Parte I

8

Parte II

 

 

Parte I

9

Parte II

 

 

Parte I

10

Parte II

 

 

 

 

CAMPEONATO NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2015

 

PROVA Nº 9 (PARTE I)

 

FOI DO DESESPERO?

Autor: Karl Marques

 

Livro de memórias, 29/07/2015.

Nem endireitas, homeopatas, biscateiros, policiaristas. Só médicos, mecânicos da marca e inspetores. Não se podia com essa gente que tinham a mania que conseguiam fazer o meu trabalho. Desamparem a loja. Valha que o policiário estava nas últimas, não havia quem escrevesse problemas (houve notícias de um palhaço a escrever um problema muito fraquinho à pressa).

O morto era desses (no relatório final, era de homem ficar “foi do desespero”). Tive a infelicidade de o conhecer em outro caso, o da “torneira eterna”, de 1/07/2012. Irritou-me tanto (mais três iguais) que ainda hoje o quero esganar (e está morto!).

Entrada do prédio, eram por aí 10h20m, um PSP informou-me que o corpo estava no 2.º andar, e que lá estava outro agente. O pessoal técnico não tinha chegado.

- Este senhor achou o corpo.

Boa. Outro esquisitóide. O arrumadinho, o sacana teve o descaramento de tentar organizar a minha secretária (asneira: recebi-os uma vez), mesmo assim estendi-lhe a mão, ele tinha-as geladas, medo? Sangue a fugir para as pernas? (“Lie to me” gostava). Talvez não, o dia além de chuvoso estava frio.

- Lembro-me de si.

- Já venho falar consigo.

- Sei que não gosta de nós, mas não se esqueça que sem ele nunca teria percebido que...

- Génios do caraças.

Acendi um cigarro e subi vagarosamente os lances de escadas a fumá-lo, a tentar ganhar energia para o que temia ir aturar. Talvez não fosse mau, se este fosse preso por matar o outro! Perigoso: dedicar-se à escrita de problemas policiais na prisão e eternizar a porcaria. Melhor arranjar outro.

No patamar (dois apartamentos por andar), empurrei a porta aberta, ficou presa no tapete. Estilo exterior que estava no interior. Não entendi, a vítima era pessoa com uma constituição tipo a minha, 100 kg por 1,75 m (descuidos), precisava de abrir bem a porta. E eu era uns vinte anos mais novo (a vítima perto dos 80).

Hall cerca de 7 m2, móveis em toda a parede, cheios de papéis e jornais sem ordem aparente, 4 portas, uma para cada lado e duas em frente. Esquerda casa de banho, direita sala e depois de atravessá-la a cozinha. Em frente, para duas assoalhadas, uma com uma cama, outra, um escritório. Neste último estava o morto. Ao entrar, com o cadeirão alto atrás da secretária, parecia que ia ser recebido pelo Marlon Brando. Só faltava o gato. Deitado ao comprido num tapete não muito alto, entre a porta e a secretária, com o braço direito estendido ao lado do corpo e o esquerdo a segurar uma arma apontada à cabeça, precisamente à zona onde uma bala fizera a sua entrada. Manchas de sangue em toda a roupa no lado esquerdo do corpo. Em redor, incluindo o hall, não se viam quaisquer pegadas, excepto as minhas. A secretária arrumada com método, ao olhar treinado chamava a atenção estar impecavelmente limpa, assim como o cadeirão atrás, o que contrastava de alguma forma com o restante mobiliário do escritório.

Passei aos interrogatórios.

Três andares, no que se veio a apurar que o rés-do-chão estava devoluto (uma loja de mobiliários que o ocupava na totalidade fechara há pouco mais de dois meses), 1.º direito estava desocupado (dificuldade em encontrar novo arrendatário), 1.º esquerdo estava de férias, 2.º esquerdo “pai e mãe” estavam a trabalhar e os filhos na escola, 3.º direito “jovem” moinante de 28 anos, 10.ª matrícula em 3 licenciaturas diferentes, 9 cadeiras concluídas no conjunto das 3, 3.º esquerdo um chanfrado... mesmo chanfrado (embora fisicamente disfarçasse bem).

No próprio momento só consegui falar com os habitantes do 3.º andar (nas 3 casas dos andares mais abaixo só ouvi o eco da campainha). O jovem moinante, que me fez esperar um bocado para atender a porta. Disse que o “velho era um bocado implicativo”, que se queixava muito do barulho que ele fazia quando chegava a casa, que era implicância, porque ele quando chegava vinha sempre tão derreado que nem barulho fazia.

- E ele não poderia ter alguma razão?

- Qual quê! Ele também se queixava dos que viviam por baixo dele.

- Os arrendatários que saíram?

- Sim, e que eram gente muito pacata sem armar confusão alguma, da minha idade mas calminhos. Bem, eu também só calhava vê-los às vezes quando eles chegavam, pelas 19h, sobretudo desde que o elevador avariou há umas duas semanas. Todos a usar escadas favorece a convivência!

- Então não deu por nada?

- Tenho estado a dormir que nem um calhau. Eu tomo umas cenas sabe... você é só homicídios? Fico com um sono bem pesado. De manhã nem campainhas atendo.

- E em outros dias, movimentos, entradas...

- Nada, só por vezes me apercebia que uns três indivíduos se reuniam com ele.

O vizinho do moinante chegou ao prédio pelas 10h50, educado e bem apresentado.

- Que maçada terrível senhor inspetor. Eu ausentei-me do edifício pelas 8h30, pois tenho a minha consulta semanal às 9h15m, porque eu...

- Prossiga...

- Sim senhor inspetor, mas estou muito melhor. Estou quase curado. O meu vizinho do lado ressonava quando eu saía, acontece-lhe por vezes, adormecer no seu hall de entrada, e às vezes nem consegue fechar a sua porta, como aconteceu hoje. Já estou habituado, infelizmente. E agora já há muito tempo que consigo resistir à tentação de lhe abrir a porta e...

- Prossiga...

- Sim senhor inspetor, desculpe, enquanto me arranjava e descia as escadas não dei por nada.

- Entradas, saídas no apartamento?

- Não me apercebo muito de movimento, a medicação faz-me dormir muito.

Faltava o arrumadinho.

- Vim, como todos os dias, desde que o elevador avariou, às 9h30, trazer o jornal. Ele mexia-se mais ou menos, mas sem o elevador... A porta estava encostada, bati, chamei, não tive resposta, empurrei a porta, entrei e fui dar com ele. Apesar de muita da teoria disto, não estava preparado. Saí quase a correr e só do patamar chamei a polícia. Não fui capaz de voltar.

- Últimos tempos, algo estranho?

- Não, não vejo razão nenhuma para ele fazer isto.

Espero que tenha gostado, e que tenha ficado mistério no ar: não era minha intenção dar-lhe informações para perceber tudo! Tem mais piada!

 

© DANIEL FALCÃO