Publicação: “Público” Data: 1 de Novembro de 2015 Campeonato Nacional 2015 Taça de Portugal 2015 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2015 PROVA Nº 10 (PARTE I) A ESTRANHA MORTE DO “TIO PALITO DAS VACAS” Autor: Mário Campino Noite fria para a época,
madrugada branda… Avô Palaló fechou o largo
portão da Rua do Paço, enquanto o cavalo esperava, sacudindo com o rabo
comprido as moscas invisíveis ou imaginárias. Montou. A breve brisa que lhe
afagava o rosto, surge com uma promessa de vida. Não tem que incitar a
montada, esta conhece a rotina do período, concluídas as sementeiras. Caminha
até à esquina, volta à direita para uma rua larga de terra batida na areia
que o levará às Milheiras. Junto do muro do pátio do Vasco deteve o cavalo e
desmontou, colocou as rédeas sobre a sela, deu uma suave palmada na anca do
animal, que seguiu em frente, seguido pelo dono, a pé, distendendo as pernas
arqueadas de anos de cavalgar. Sempre que se afasta meia dúzia de metros do
companheiro, o cavalo pára, aguarda que o dono chegue à sua beira para
continuar. Neste ritual, o avô avistou adiante a carroça carregada com bidões
largos, onde o “Quim Leiteiro” despejava uma bilha de boca larga, outra
tombada no chão, frente à rua vedada por uma vara de pinho caída, que dava
acesso à pequena propriedade do “Tio Palito das Vacas” – na verdade João
Libório, que o povoléu alcunhara por possuir quatro vacas leiteiras, ser
delgado sem ser alto, mas rijo para o trabalho apesar da idade – um
regressado dos “Brasis”, cujos sacrifícios lhe permitiram amealhar “patacas”
bastantes para comprar uma pequena parcela de terra, onde construiu uma casa
tosca, um barracão largo, uma horta tipo familiar e pastagens para o gado.
Dele se pensava que teria um bom “pá de meia”, resultado da venda diária de
oitenta litros de leite e a “MariDores” ia todas as semanas fazer queijos,
para a casa ou venda. Com ele vivia o sobrinho Óscar, filho da falecida irmã
e único membro da família, agora com dezanove anos, um segundo “palito”, mas
mais frágil e enfraquecido pela bebida, avesso ao trabalho, assíduo na
Taberna da Rita Pirua. O Avô Palaló gostava da
índole do Libório e as andanças pelas Milheiras, incluíam, normalmente, “dois
longos dedos de conversa” com o vizinho, pelo que o cavalo parou na
serventia, bufou como que aliviado de uma grande corrida que não fizera,
cheirou um tufo de ervas no valado, de que se desinteressou e esperou o dono.
Este, a três passos da cena, já ouvia o leiteiro esbracejar: - Aquele “alentejano do
demo”, quis enganar-me! Trouxe duas bilhas, uma vazia. Ai que eu faço uma
asneira… - Calma, homem, vamos ver
o que se passa. – aconselhou o avô. Entraram. Logo adiante uma
“pedaleira” no chão. Mais além uma casa rústica de tecto alto, um casarão
totalmente aberto. Nele, duas vacas mugiam angustiadamente, uma terceira fora
arrastada pelo “Miguel Alentejano” – um homem baixo e forte, de rosto crestado
pelo sol, que viera pedir trabalho há uns meses e ficara – para o prado onde
uma outra abocanhava, serena, a erva tenra, todavia, o animal voltara a
entrar no barracão e junto da cancela fazia coro com as outras. Miguel
prepara-se para ordenhar, hesitante. Os dois homens apareceram
e o leiteiro atacou: - “Qué” lá isso? Levaste
uma bilha cheia, outra vazia… - “Ná”. Carreguei duas,
eu… O avô interrompeu: - Vamos a isto minha
gente; primeiro o trabalho! E airou uma bilha para as mãos do leiteiro, ele mesmo
começou a ordenhar. Sem questionar
transportaram as bilhas cheias para o terrado frente à habitação. O
“brasileiro” tinha a porta cerrada, estaria na horta? Miguel foi encarregado de
despejar as bilhas na carroça, enquanto o avô e o leiteiro iam à horta. Não o
encontraram. Estaria doente? Pensou o avô. Voltaram ao terreiro. O
avô, preocupado, viu o alentejano já de volta da missão, bateu à porta sem
resposta e entrou. Dentro estava escuro. Abriu uma janela. O Libório estava
sentado numa cadeira de braços, à mesa, frente a uma tigela de café frio,
metade de um queijo e pão. Acercou-se, tocou-lhe com os dedos no rosto
anormalmente frio. Estremeceu. Olhou à volta para reparar que a lareira
parecia não ter sido acesa, o candeeiro de petróleo estava apagado por falta
de combustível… Chegou-se à porta e gritou
para os outros. - O homem está morto!
Olha, Quim, mete-te na “traquitana”, passa pelo Dr. Chico, diz-lhe que vais
da minha parte… e vai à tua vida. Sentou-se ni pial da
porta. Miguel parecia apático. - E agora o que é que eu
faço? Nunca passei da porta da casa, mas ontem, perto das nove da noite,
estava à espera do sobrinho e pediu-me para o ir buscar à taberna.
Encontrei-o perto daqui, “enfiado na pedaleira”, “bêbado que nem um cacho”,
com as palmas das mãos cheias de sangue. Carreguei-o às costas e deixei-o na
cama. O patrão até me deu uma nota pequena. Agora… O médico levou meia hora,
bem puxada, a chegar: - O que temos, Manuel? Entrou e acercou-se do
morto, atestou a rigidez, pediu para o ajudar a retirar o corpo da cadeira…
deteve-se. - Espera, ele não está
sentado, jaz hirto. Estranho! Examinou o pescoço,
levantou a camisa, conseguiu puxar as calças e observou: - Olha para estas manchas
roxas, no pescoço, nas costas, nas nádegas, na parte inferior das pernas…
segredou ao ouvido do avô – isto quer dizer… Com os dedos hábeis,
tacteou o corpo; ao explorar a cabeça descobriu um pouco acima da nuca,
encoberto por escassos cabelos, uma contusão arredondada, provavelmente
resultante de pancada com objecto redondo, pedra ou ferro, da qual, tudo o
indica, resultou esmagamento do crânio – denunciou. - É melhor avisar o
comandante do posto, o nosso cabo André. É preciso uma autópsia, mas deixe-o
ver o corpo. Quem terá feito isto? O avô como que acordou de
um pesadelo: - Tenho de dar
conhecimento ao sobrinho… Foi à porta e gritou para
o Miguel: - Onde está o Óscar, saíu? - Ora, acho que “tá na
sorna”! O avô e o médico subiram
as escadas de madeira para o sótão. O rapaz estava a ressonar, atirado para a
cama, babado e a cheirar a azedo. Não respondeu aos abanões do médico, que
lhe deu uma bofetada dura. Acordou desnorteado: - Tio… isso não vale! Levantou as mãos sujas,
com escoriações e sangue seco, igualmente visível na manta. Sentou-se, zangado. Ao
fazê-lo, alguma coisa caiu ao chão com estrondo – um pilão de cobre de um
almofariz. O instrumento do crime,
creio! E apoderando-se do objecto, o médico correu escada abaixo, para pouco
depois gritar para cima: - Ajusta-se, Manuel,
ajusta-se! O almofariz está na cozinha. E o Dr. Chico, subitamente
apressado, alegou a visita a um doente e partiu. O avô ponderou as motivações
de A a Z e concluiu pelo roubo. Entretanto a casa não apresentava indícios de
busca; a hipótese viável é que o ladrão só descobriu o esconderijo do dinheiro
no momento em que a vítima o retirava. Esperou quase três horas
pelo cabo André, a quem relatou os acontecimentos e conclusões pensadas e
ponderadas. O cavalo, cansado de
esperar, entrou e postou-se no terreiro, batendo o chão com as patas fortes,
agora impaciente. Entretanto: Quais as
conclusões, fundamentadas, do leitor? |
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©
DANIEL FALCÃO |
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