Publicação: “Público” Data: 12 de Novembro de 2018 Campeonato Nacional 2018 Taça de Portugal 2018 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2018 PROVA Nº 10 (PARTE II) SÁBADO SANGRENTO Autor: Troll O
domingo amanheceu frio, apesar da Primavera estar há
muito instalada. Nos campos aumentava a azáfama, que na agricultura, como
sempre dizia o senhor Ribeiro, nunca havia tempos mortos, nem horas de estar
de papo para o ar. O sábado
foi de alguma emoção pelo registo da chegada do “menino” Gaspar, que apesar
de não ser propriamente um menino, para toda aquela gente jamais deixara de o
ser. Há uns anos abandonou a quinta e partiu, zangado com o pai Ribeiro e
nunca mais deu notícias, nem uma palavra. Regressou agora, como se nunca
tivesse partido, respirando boa saúde e, mais surpreendentemente, boa saúde
financeira, já que ostentava uma viatura de alta cilindrada, vestuário de
excelente qualidade e carteira recheada. Parecia que queria mostrar ao pai e
a todos, que não precisava deles para nada. No
sábado à tarde, percorreu a propriedade, como que a matar saudades e no final
da tarde esteve com o pai no escritório, aparentemente em boa cavaqueira e
concórdia, como testemunharam todos os empregados da casa. Parecia que nada
tinha havido entre eles. Pelas 19
horas, o senhor Ribeiro anunciou ao filho que ia receber Macário, o
contabilista, com quem teria de discutir algumas questões e despediu-se, já
que Gaspar ia sair para jantar em Lisboa, onde o esperavam alguns amigos.
Pelas 20 horas, depois de 40 minutos de viagem e mais uns tantos para
procurar estacionamento, Gaspar estava em alegre convívio em Lisboa. Regressou
à quinta nos alvores de domingo, muito bem bebido e meio descomposto, sendo
amparado pelos empregados e conduzido ao quarto, tendo caído em cima da cama,
onde ficou a ressacar ruidosamente. Pelas 10
horas, a estranheza da ausência do senhor Ribeiro, um facto absolutamente
inédito, tanto mais que normalmente era o primeiro a acordar, fez com que
fossem bater à porta do quarto, não o encontrando. Dado o alarme, a procura
não foi longa porque o cadáver estava no escritório, na poltrona onde se
sentava frequentemente para ler ou apenas para beber um brandy, no final de
cada dia e onde falava com os seus convidados. Aquela
mansão enorme, só tinha vida durante o dia, com os criados a tratarem de
todos os pormenores e limpezas, porque o senhor Ribeiro fazia questão de lhe
dar o aspecto e a vida de quando a mulher era viva
e o filho corria por aqueles corredores, em algazarra. Agora, logo que a
noite se aproximava, comia qualquer coisa frugal, dispensava os empregados
que iam para os respectivos aposentos, em outro
edifício e ficava só, primeiro com os seus apontamentos, porque tinha o
hábito de escrever todos os passos e conversas diárias, num caderno de folhas
soltas perfuradas, que ia alinhando dia após dia e mais tarde com os seus
pensamentos e memórias, afundado naquela poltrona, até ser hora de se deitar,
após um bom e reparador banho. Nesta
noite, a rotina foi travada por um tiro desferido na têmpora direita, a curta
distância, pela pistola que estava no chão, junto da sua mão. Não havia mais
qualquer indício da violência que ocorreu naquele compartimento, inspeccionado ao milímetro. – Quando
me fui embora, o meu pai ficou muito bem. Ia receber o senhor Macário para
discutir com ele não sei o quê. Eu saí directamente
para o carro e fui para Lisboa jantar e conviver com amigos, não sei de mais
nada. Ele tem um caderno onde aponta tudo, mas não sei onde o guarda. – Estou
muito abalado. O senhor Ribeiro e eu conhecemo-nos desde sempre. Sou filho da
Maria, que foi governanta desta casa desde os tempos da senhora e foi graças
a ele que consegui estudar e tirar o meu curso de contabilista. Estou mesmo
muito abalado. Ontem o senhor mandou chamar-me, não sei para quê, porque
quando cá cheguei bati à porta mas não tive resposta. Ainda insisti, mas como
era habitual o senhor adormecer na poltrona, não o quis perturbar. Era
frequente acontecer isso e a princípio eu acordava-o, mas ele dizia-me que
quando estava cansado não tratava de assuntos e adiava a conversa para o dia
seguinte. Deixei de o acordar. Bato à porta e se ele me manda entrar, entro,
se não há resposta, vou embora e volto no dia seguinte. Foi o que fiz. – Eu sou
o Manel, empregado do senhor Ribeiro. Ontem vi o menino ir embora e passado
algum tempo entrou o senhor Macário, que não se demorou muito. Não entrou mais
ninguém porque sou eu que faço a última ronda em redor da casa para verificar
janelas e portas. Se pode ajudar, o senhor Ribeiro tem um caderno onde aponta
os seus encontros e conversas logo que as acaba, para não se esquecer. Talvez
lá esteja qualquer coisa. O Inspector encontrou o caderno na gaveta da secretária. No
dia, lia-se a data e descrição do que fora feito e falado e nele constava que
se ia encontrar com o filho no final do dia, mas não tirava conclusões sobre
o que falaram. Na folha seguinte, relatava-se o encontro com Macário sobre o
modo de pagar aos homens que foram contratados nesse dia para ajudarem na
poda das videiras. A – Foi
Gaspar; B – Foi
Macário; C – Foi
Manel; D – Foi
suicídio. |
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©
DANIEL FALCÃO |
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