Publicação: “Público” Data: 4 de Março de 2018 Campeonato Nacional 2018 Taça de Portugal 2018 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2018 PROVA Nº 2 (PARTE I) SMALUCO E A MORTE DE JORGE MARAVILHAS Autor: Inspector Boavida Smaluco acordou sobressaltado. Adormecera muito
tarde e ainda não eram sete horas da manhã quando o telefone tocou. Do outro
lado, ouviu, em lágrimas, o seu velho amigo Necas Baptista, considerado um
dos mais completos e originais artistas de variedades de todo o mundo, com
grande projeção internacional nos anos 1960/70, que vivia em união de facto
desde esse tempo com o radialista Jorge Maravilhas, numa altura em que a
homossexualidade era apenas tolerada e por muito poucos. A razão do
telefonema de Necas e da sua voz embargada residia na morte do seu
companheiro de vida, que sucumbira durante a madrugada a um tiro na cabeça,
sentado à secretária do escritório da casa que ambos partilhavam, desde há
muito, num bairro chique da Lisboa moderna. O velho detetive Smaluco aconselhou-o a não mexer rigorosamente em nada e
dispôs-se a satisfazer o seu pedido de ajuda, por se sentir muito abalado com
a situação e não se sentir com ânimo para tratar dos procedimentos que desde
logo se impunham. De cara
e dentes lavados, vestido com a mesma roupa da véspera, e depois de ter
engolido à pressa um café despertador, Smaluco
pôs-se a caminho de casa dos amigos, recordando mentalmente as grandes noites
de glória de Necas nos palcos de quase todo o mundo e a legião de admiradores
conquistados por Jorge, que seguiam a sua voz inconfundível nos postos
emissores onde prestava colaboração. Ambos haviam feito uma grande fortuna
com as suas respetivas carreiras profissionais, investindo parte dela nos
mais diversos negócios, desde a hotelaria à restauração, passando pelo
imobiliário, invariavelmente com grande sucesso. Nos últimos tempos, porém,
com a crise financeira desencadeada em 2007, a partir da queda do índice Dow Jones motivada pela concessão de empréstimos
hipotecários de alto risco, as economias do casal sofreram alguns
revezes ao ponto de ambos perderem cerca de metade do que haviam
acumulado. Para
agravar a situação, Necas e Jorge não haviam resistido ao vício do jogo que
se tinha apoderado irremediavelmente deles, desde há cinco anos, jogando na
roleta e na banca francesa quase tudo o que lhes restava. As discussões entre
eles passaram a ser uma constante, acusando-se mutuamente da responsabilidade
pelo sucedido. Como se não bastasse esta terrível situação, Jorge enamorou-se
de um jovem cantor em princípio de carreira, o que devastou Necas. Mas durou
pouco aquele enamoramento. A ave canora bateu as asas com um passarão da
noite alfacinha, a contas com a justiça em diversos processos que se arrastam
pelos tribunais há décadas, e anda por aí por essa europa fora a cantar para
as comunidades lusas, tendo deixado o coitado do Jorge pelas ruas da
amargura. Antes, porém, de ter sido abandonado, o antigo radialista foi vítima
da falsificação de sua assinatura em diversas dívidas contraídas e agora
reclamadas. Quando
chegou ao prédio dos seus dois amigos, Smaluco
encontrou Necas à porta da rua, muito agitado, andando de um lado para o
outro, correndo ao seu encontro logo que o avistou. Um abraço comovido, com
algumas lágrimas à mistura e palavras sentidas de condolências, antecederam a
entrada de ambos no edifício e a subida até ao segundo piso. De passos
rápidos, sem perderem tempo com a espera do elevador, galgaram os degraus das
escadas dois a dois, como se fosse ainda possível salvar a vida do amigo
comum, e depressa alcançaram o escritório onde jazia Jorge. Tombado na
secretária, com a cabeça levemente caída sobre a esquerda, via-se claramente,
acima da orelha direita, uma ferida com os bordos estrelados, apesar do muito
sangue que encharcara o cabelo e escorrera até ao tampo da secretária onde o
seu braço direito estava poisado, perto de uma arma e de um sobrescrito
fechado e endereçado a Necas. No chão
do escritório, próximo da secretária, brilhava uma cápsula de bala. Ao lado
do corpo do infeliz homem da rádio, estava um velhinho e imaculado gravador
de cassetes, seu companheiro de todas as horas, com o qual registava os
instantâneos do dia-a-dia que faziam as delícias dos seus ouvintes. Por
instinto, Smaluco carregou na tecla “play” do
gravador e logo se fez ouvir a inconfundível voz de Jorge Maravilhas:
“Desculpa-me, Necas. Tu não merecias o que te tenho feito passar. Fui tão
falso e ingrato contigo, que não consigo suportar a dor do remorso que me
consome a alma. Mais do que a raiva de ter sido enganado por um ser vil que
arruinou o que ainda restava daquilo que construímos juntos, o que me mata é
a mágoa do mal que te fiz. Desculpa, amor”. A seguir, ouviu-se um estrondo. Smaluco ficou tão impressionado, que desligou de imediato
o gravador, ficando em silêncio enquanto os olhos marejavam. Quando,
a meio da tarde, relatou à sua amada Natália este acontecimento, que terminou
com um telefonema para a Judiciária, onde um ex-colega e amigo se encarregou
de todos os procedimentos que terminaram com a declaração de óbito por
suicídio e a libertação do corpo para funeral, ouviu da boca desta um
chorrilho de críticas que terminaram com uma frase arrasadora: “Nunca mais
tens emenda, meu amor. Se não estivesse aqui presa, ia já contigo resolver
aquilo que não ficou bem tratado”. Em que
se baseia Natália Vaz para proceder deste modo, caríssimos leitores? |
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©
DANIEL FALCÃO |
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