Publicação: “Público” Data: 5 de Agosto de 2018 Campeonato Nacional 2018 Taça de Portugal 2018 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2018 PROVA Nº 7 (PARTE I) CRIME IMPOSSÍVEL Autor: Rigor Mortis Tarde de
Novembro, bonita mas fria. No jardim, junto à casa senhorial, a conversa era
tranquila, desde logo a seguir ao almoço. Amélia, na sua cadeira de rodas,
ouvia com enlevo a tagarelice da filha, Rebeca, jovem a meio dos vintes que,
feliz, descrevia as casas vistas com o noivo, António. Assim estivesse segura
do carácter do futuro genro… À porta
da casa, Rafael, caseiro para todo o serviço, homem forte nos seus sessentas,
pronto para o que fosse preciso. Ao seu lado Madalena, a enfermeira da
Amélia. Apenas o calor que vinha da pequena instalação de sauna por detrás
dos buxos evitava que enregelassem. – Está a
ficar frio – disse Amélia. Podemos jantar, Rafael? Ainda nem são sete horas,
mas sabia-me bem jantar e deitar cedo. – Vou-me
encontrar ao fim da tarde com uma pessoa na vila – disse António. – Não me
demoro, mas jantem. Como qualquer coisa quando chegar. António
seguiu de carro para a vila e Rebeca levou a cadeira da mãe até à sala de
jantar, sentando-se a seu lado. Madalena ficou por perto, enquanto Rafael
servia o jantar. A conversa entre mãe e filha continuou, com um ou outro
comentário de Madalena. Quando
esperavam pelo café, que Rafael fora buscar à cozinha, ouviu-se um tiro. – Meu
Deus! Que foi isto?! – Foi um
tiro, mãe. Por estas alturas andam sempre aí à caça. Foi para os lados do
ribeiro. Rafael
apareceu logo a seguir com o café e biscoitos, e a conversa ficou por aí.
Eram oito horas quando Amélia pediu a Madalena para a ajudar a deitar-se.
Rafael arranjou um lugar na mesa com uma refeição fria para o António e
retirou-se. Pelas
dez da manhã seguinte a casa senhorial foi agitada pela chegada de uma
viatura da polícia, com o inspector João Velhote e o seu assistente. Antes de
entrar, o inspector observou atentamente o jardim, os buxos que o limitavam e
a casota de sauna por detrás destes, de onde ainda vinha algum calor. Já na
sala, na presença dos cinco, João Velhote explicou que uma hora antes fora descoberto
um corpo na margem do ribeiro que passava na propriedade. José Rodrigues,
trinta anos, assassinado com um tiro na fronte. Velhote
ficou a saber que os cinco tinham passado a tarde em casa, que António fora à
vila pelas sete, regressando às oito e meia. Comera uma refeição fria e pelas
nove e meia deitara-se, tal como Rebeca, que lhe tinha feito companhia. A
casa estava em silêncio, indicando que todos se tinham já retirado. Soube
também que em casa existia uma velha pistola, do marido de Amélia, que
António e Rafael tinham usado uns dias antes para fazer tiro ao alvo. A caixa
onde era guardada a pistola foi-lhe entregue pelo Rafael – 2 balas no
carregador, sinais de que tinha sido usada recentemente, um silenciador
impecavelmente limpo, uma caixa de balas. O calibre da arma era o mesmo da
bala que tinha morto o José Rodrigues… O
inspector interrogou cada um deles, a sós. Madalena nada acrescentou. De
Amélia soube que o marido, Manuel, falecera dez anos antes, no acidente de
automóvel que a tinha deixado paralítica. Quando inquirida se conhecia o José
hesitou vários segundos, mas acabou por revelar que era filho do seu marido,
de um desvario antes de se casarem. Manuel tinha convencido o Dr. Felisberto
Rodrigues, seu grande amigo e médico da vila, que atendera o parto em que a
mãe falecera, a adoptar o José. – Pouca
gente sabe disto, muito menos a Rebeca. Nem o José o sabia. – O
Rafael, parece-me que lhe é muito dedicado… – O
Rafael está conosco desde pouco depois de nos termos casado – respondeu após
nova hesitação. – Foi furriel na companhia do meu marido, na guerra em
Angola. Ainda fez um ano de Medicina, sabe? Depois a vida deu-lhe umas
voltas, perdeu os pais e foi chamado para a tropa. Há muito que sei que ele
gosta de mim… Mas quando o Manuel morreu fiquei nesta cadeira de rodas e
nunca… Achei que não devia… De
Rebeca soube dos preparativos para o casamento com António. Também ela
hesitou quando lhe perguntou se conhecia o José, mas disse que sim, embora o
evitasse porque era atrevido para com ela e não simpatizava com ele. António
não hesitou: – Rebeca
já me tinha falado dele, e dos seus avanços quando a via. Foi com ele que fui
falar ontem ao fim da tarde, para lhe dizer que se devia afastar da Rebeca.
Mas garanto-lhe que ele estava vivo quando o deixei, às oito horas! Aliás
lembro-me bem do seu sobressalto quando ouvimos o tiro, ao sair de casa dele. Rafael
também não hesitou: – O José
era um tipo com mau feitio. Infelizmente não saiu ao pai dele. – O Dr.
Felisberto Rodrigues? – perguntou João Velhote. Rafael olhou de soslaio para
o inspector: – D.
Amélia já lhe deve ter dito que o José era filho do seu marido… Sim, o senhor
Manuel contou-me. Coitado, pagou cara a tentação! Foi ele que suportou a
educação do José. Não serviu de nada… E o malandro andava a atirar-se à
menina Rebeca, sem saber que era meio-irmão dela! – Há
quanto tempo conhece o António? – Há um
ano, desde que o namoro com a menina Rebeca se tornou sério. Outro que tal…
Têm-me dito que vez por outra anda às voltas com duas moças da vila… Saindo
da casa pela porta da cozinha, o inspector foi a pé até ao ribeiro, onde o
médico-legista acabava de examinar o cadáver. Em passo rápido, levou oito
minutos. Olhou à volta. Entre o ribeiro e a casa senhorial um denso arvoredo,
com o estreito caminho por onde tinha ido. Do outro lado, a uns cem metros, a
casa do José. – Isto
está confuso… – disse o médico. – O cadáver estava meio imerso no ribeiro e a
água está bem fria. Mas tendo isso em conta, diria que a morte foi entre as
14 e as 18 horas de ontem. Lamento, mas mais preciso só depois da autópsia. – Para
já chega-me, doutor – disse João Velhote, mordiscando o lábio superior e
expondo os incisivos inferiores por baixo do bigode grisalho. – Há coisas a
tirar a limpo, mas já começo a ter uma boa ideia do que aconteceu aqui ontem… É a sua
vez, caro leitor… Quem
terá morto José Rodrigues? Que terá
ali acontecido na véspera? |
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©
DANIEL FALCÃO |
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