Publicação: “Público” Data: 7 de Fevereiro de 2010 Campeonato Nacional 2010 Taça de Portugal 2010 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2010 PROVA Nº 2 (PARTE I) ALI JAZ O ALI KATE Autor: H. Rái O engenheiro Ali
Kate era director de fabrico e sócio da empresa Suggysopra, sediada entre a
Rua dos Têxteis e a da Cortiça, no parque industrial e tecnológico de Évora.
Tinha nacionalidade líbia e estava refugiado em Portugal desde a 1ª invasão
do Iraque. Vivia na Praça do Giraldo. Lia muito, particularmente, Sayyid
Qutb. Gostava de gatos e da música de Oumeima El Khalil e de Wagner. Amante
do BTT, ia de bicicleta para a fábrica, mas ontem trocou a prova de Machede
por um dia de trabalho. Na véspera, por volta da uma da noite, foi visto a
descer do telhado da vizinha. Na manhã do dia aziago, comprou o PÚBLICO na
tabacaria da esquina e tomou o pequeno-almoço na pastelaria ao lado, como
habitualmente. Foi visto no táxi que o levou à fábrica. Hoje, fora encontrado
morto no seu gabinete, no escritório da fábrica em que trabalhava. O engenheiro Meca
Trão, egípcio, cristão copta, há muito radicado no Alentejo, accionista
principal e administrador da empresa, regressou ontem no avião da noite,
depois de contactar o lobby do ar
condicionado na União Europeia e a empresa Sinocc, para análise das
perspectivas de lançamento dos seus produtos na China. Na manhã desse dia,
tinha conferenciado pela Net com o engenheiro Ali, mas a imagem e o som eram
de muito má qualidade. Pareceu-lhe ter visto o engenheiro Ali olhar para a
direita e ouvido um estranho som, que parecia de foguete, trovão ou tiro. A
ligação caiu imediatamente e nunca mais foi retomada. Ainda tentou o
telemóvel, mas, se o homem estava morto, como lhe poderia responder? Hoje, de
manhã, ao chegar ao escritório empurrou a porta do gabinete do engenheiro Ali
e deparou-se com tal espectáculo. Não sabia o que pensar nem o que dizer. O doutor Cifrões,
director financeiro da empresa, que ajeitou as suas contas para esta fugir ao
fisco, tinha recebido na sexta-feira o aviso de despedimento por a
administração o ter usado como bode expiatório. Morava na Quinta da Canhota e
esteve na fábrica toda a manhã de ontem, para arrumar os seus papéis, pois
não estava disposto a voltar a encontrar-se com qualquer dos patrões. Era
mesmo bom que nem lhe aparecessem pela frente. A doutora
Presumida, mulher do doutor Cifrões, algarvia de Alcoutim, era intragável
para qualquer gosto, mas também tinha os seus encantos e sabia tirar deles o
seu proveito. Tinham uma filha e um filho que estudavam em Harvard. Já haviam
sido íntimos do casal dono da fábrica, mas deixaram-se disso, pois era gente
esquisita, de baixo nível e traiçoeira, que se dava melhor com a “moirama”,
em particular a “madame”. Enfim, gente muito reles e pouco recomendável, como
dizia. Ontem, de manhã, estivera no Pavilhão dos Salesianos com uma amiga a
assistir ao convívio das miúdas do basquete. D. Bertolinda,
mulher do engenheiro Meca Trão, natural da Asseiceira, tinha um filho e duas
filhas adultas deste casamento que estudavam na cidade. Devota a S. Domingos,
frequentava o meio religioso da cidade. Era uma mulher inteligente, ainda
muito bela, apesar da idade, mas tão frívola como em nova. No dia do crime,
estaria nas Caldas da Rainha, onde teria ido para tratar de um assunto de
família, segundo disse. Estava muito confusa e não compreendia o sucedido. O senhor Com Praki,
sículo, director comercial da empresa há cinco meses, encontrou-se com a
vítima na noite de 21, num monte alentejano. Esteve na fábrica no dia
seguinte até à hora do almoço. Pareceu-lhe estranho ver a esposa do
engenheiro Meca Trão passar rente à parede, a coberto do telheiro, em
direcção aos escritórios, mas não sabia o que se teria passado, pois esteve
muito ocupado com o seu staff a
organizar a saída de uma encomenda. O Cerrótrinco, um
português de Arrouquelas, guarda-portão da fábrica, de serviço no dia do
acontecimento, garantiu que, para além dos operários a trabalharem numa
encomenda para entrega urgente, naquela manhã, só entraram na fábrica o
director de fabrico, o senhor Com Praki e o doutor Cifrões, mas não sabia o
que foram fazer nem quando saíram, pois como tinha que se ausentar para fazer
a ronda e a porta estava no trinco, para a abrir por dentro não era precisa a
sua chave. O Zé Popó,
eborense, condutor de táxi, transportou a vítima à fábrica no dia da sua
morte e, ainda nessa manhã, uma mulher, que deixou à porta da fábrica. Não
sabia mais nada, mas desse dia, 22 de Março de 2009, não se iria esquecer tão
cedo. Segundo a
investigação, havia muita humidade e um cheiro desagradável no gabinete. Uma
bota suja de lama deixou uma leve marca de terra seca no chão da sala. Na
secretária, via-se um bloco de notas, utensílios de escritório e o livro de
Haruki Murakami: Kafka à Beira-Mar,
aberto e apoiado sobre o tampo da secretária do lado esquerdo do corpo, tendo
sublinhado a lápis o parágrafo seguinte: ‘Okay, farei isso. Não se preocupe e
vá com calma, está bem? – disse o polícia, não resistindo a acrescentar uma
nota pessoal. – Sabe, para quem acabou de matar alguém e ficou todo
ensanguentado, as suas roupas estão com muito bom aspecto. Não se vê nem uma
gota de sangue.’ Junto à parede
oposta à porta de entrada, estava caída uma bala de pistola Undercover
Southpaw, da Charter Arms. Havia diversas impressões digitais em vários
locais, mas o puxador da porta estava limpo. Pendente da secretária e ligado
ao notebook, via-se um par de
auscultadores de mp3 em mau estado. O computador perdeu-se às 10 horas, mas a
sua análise ajudou a concluir que, no momento da morte, a vítima estava
ligada por Skype a um IP na Bélgica. A grossa camisola e a camisa que vestia
apresentavam orifícios, atrás e à frente, na zona do ombro, com uma pequena
mancha de sangue já seca. Nos bolsos, havia o porta-moedas, carteira e
telemóvel, com registo de telefonemas e mensagens não relevantes para o caso. O cadáver tinha a
surpresa no rosto e um tom azulado de padrão único. O rigor mortis era mais
intenso na zona envolvente da entrada dos canais auditivos, vendo-se duas
pequenas ampolas na pele do trago direito e três junto ao do lado oposto.
Aqui, apresentava uma pequena ferida mais antiga e três pequenos arranhões
paralelos na região temporal adjacente, não sarados. O músculo trapézio
esquerdo estava perfurado, sem sinais de hemorragia, mas com um ligeiro anel
mais escuro nos bordos da ferida de entrada, distorcido na direcção do
pescoço. De um e outro lado do maxilar inferior, viam-se dois ténues riscos
negros, como se tivessem sido feitos a carvão. No estômago, encontraram-se
restos de comida e, no sangue, cafeína e níveis não usuais de glucose. O que se terá
passado, então, aqui? |
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© DANIEL
FALCÃO |
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