Publicação: “Público” Data: 3 de Outubro de 2010 Campeonato Nacional 2010 Taça de Portugal 2010 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2010 PROVA Nº 10 (PARTE I) A VOZ DO DESTINO Autor: M. Constantino Sou um criminoso:
larápio por diversão e proveito; assassino justiceiro. Vivo em tranquilidade:
a consciência acompanhou a vítima na tumba! Filho único de pais
abastados, obtive licenciatura em engenharia electrónica. Com o óbito dos
papás cortei com as futilidades. Solitário, observava o formigueiro humano.
Junto de um supermercado. Uma moça jovem, curvilínea, de cabelos presos ao
alto, andava devagar, atenta. Rápida pegou na mala de uma senhora e correu
pelo passeio. Ultrapassei-a e abri a porta do passageiro. Atirou-se para
dentro sem hesitar. No quarteirão seguinte parei. Extraiu o dinheiro da mala
e atirou-a fora. Sorri naturalmente. Desabafou: – Não me censure.
Não sou uma ladra, só quero pagar as lições de dança. Antes isto que
prostituta! Desfez o penteado e
deixou cair sobre os ombros uma torrente de cabelos louros. Estremeci.
Estático, parecia que nunca tinha visto uma mulher. Tal como um golpe de
vento que tudo impele num instante, achei-me a convidá-la para almoçar, após
o que, inopinadamente, a pedi em casamento. Olhou-me. Olhos verdes-azulados,
avaliadores. – Sério?, inquiriu.
Tinha 18 anos, eu 37. Visitámos centros de dança pelo mundo. Três anos após
voltámos a Lisboa, casados. Um ciclo feliz. Salomé, nome artístico escolhido,
tornou-se um fenómeno de sucesso. Arte vibrante até ao êxtase. Flores e
convites pejavam o camarim. O êxito venceu o dever conjugal: afastava a
maternidade, exigiu manter secreto o casamento, viver só. Acedi desgostoso,
considerando que a mulher de um homem é sempre reputada fiel. Deixei de ir
aos espectáculos. Detestava elogios lamechas. Instalei-a numa vivenda. Tinha
criada até às 16 horas e o agente artístico fornecia o transporte necessário.
Para visitas deixava o carro longe… Neste vazio de motivações, entediado,
recordei as circunstâncias em que a conhecera. Como uma tentação, testei a
capacidade de larápio. Estudei fechaduras e alarmes, adquiri e fiz material
próprio. Em escassos segundos abria qualquer fechadura, com uma caneta laser
cegava os detectores desligando totalmente os alarmes. Aprendi disfarces,
equipei um velho carro. As regras profissionais envolvem sangue-frio,
paciência, ponderação, planificação até ao imprevisto. Tinha tempo,
imaginação, habilidade. Roubava joalharias e ourivesarias. Poucos objectos,
mas de valor bastante para fazer ferver a adrenalina. Quando lhe
desapareceu um bracelete, recorreu a um “espertinho investigador” da polícia
local, Vicente T. do Hory – descendente de uma família húngara, naturalizada
após fuga ao governo comunista em 1919 – que lhe devolveu a jóia. A incrível
eficiência do polícia criou a continuidade dos contactos. Num passeio, Salomé
agradara-se de um deslumbrante diadema exposto na Joalharia Costa. Não
faltaram admiradores, mas o preço afastava-os. Maravilhoso. Reportado ao séc.
XIX, uma faixa com um grande diamante azul ao centro, salpicado lateralmente
de diamantes verdes. Tomei a decisão de lho ofertar. “Um barbado servente de
pedreiro, doente e faminto”, é socorrido na cozinha do joalheiro sr. Costa,
feliz e falador. Saí a chorar mas com ampla visão das defesas. Nessa noite
visitei Salomé. Confiei-lhe que o dono da joalharia ao fim da tarde ia com a
noiva para o Algarve por três dias. “Depois de amanhã deves estar em casa, à meia-noite
vou buscar o diadema”. Sabia que abominava a minha diversão que,
indirectamente, sugerira. Não era a primeira vez quer me dera álibi.
Mostrou-se rebelde. Soube no dia seguinte que cancelara os espectáculos para
ensaiar. Disse antes que
“uma mulher de um homem é sempre reputada fiel” – devo acrescentar – “até
encontrar outro homem”! À noite fui à vivenda, abri a porta e ouvi-a ao
telemóvel: – Vem, estou só. Estás de piquete? Não. Amanhã estou em casa só,
ele vai roubar o diadema à meia-noite… Vê se…” Fechei a porta, devagarinho,
com um grito de desilusão e angústia a embargar-me a garganta. Cambaleei.
“Víbora traidora”. “Cadela que morde a mão que lhe estendeu o pão”. Suava.
Sentia frio… Ao choque sucedia o grito de vingança. Parei o carro junto de uma
cabine telefónica. Não obtive resposta, voltei a tentar de uma outra cabine,
nada. Liguei para a esquadra, para o Vicente: quando a telefonista fazia a
ligação, pousei o auscultador. Troquei de carro e procurei uma morada. De
luvas, bati e toquei a campainha. Esperei um momento. Algo me intrigou. Que
escondia a fechadura de cinco pontos do fecho e a Yale? Em menos de três
segundos desactivei tudo. Casa asseada. Na parede do escritório um quadro de
Matisse. Conhecia arte e aquele “era autêntico”, jurava. Um enigma a
desvendar!? Na estante livros profissionais e sobre arte; agendas de 2008 a
2010. Na primeira, uma única anotação: “Mulher com limões e flores”.
“Matisse”. Seguido de “Tio Avô Elmyr Dary – Barão Harzog / Elmyr Dary –
Boutin”. Nas restantes, notas pessoais. Tinha de deixar um rasto
incriminatório. Na primeira página do bloco A4 com símbolo da esquadra a que
estava adstrito desenhei o croquis da Joalharia Costa, entradas, alarmes…
Abri a agenda e coloquei na data do projectado assalto. Arranquei duas
páginas do interior do bloco, uma das quais sem símbolo e nesta desenhei o
croquis da Ourivesaria Moda, juntei à agenda com a data do furto, 4ª feira,
dia de S. Brás, marcando todas as datas de roubos anteriores. Rasguei a folha
restante. Deixei a porta no trinco. Deitei-me tarde e tarde me levantei para
a realidade amarga. Vi Vicente vigilante. Entrei num quiosque e comprei meia
dúzia de 24 horas e envelopes. Um carteiro barbudo, “autêntico”, surgiu. Na
mão esquerda jornais dobrados e envelopes. Parei na habitação do Costa,
ligada interiormente ao estabelecimento. Provocante, demorei a colocar a
correspondência na caixa ao lado da porta. Tranquilamente continuei. Limpei o
“companheiro de andança”, estacionei-o na rua, chaves na ignição. Dispunha de
tempo. Desloquei-me ao Rossio para assistir ao desfile das máscaras, marcado
para as 16h30. Desisti. Afinal todos somos uma máscara! Num restaurante, pedi
água e vomitei… A hora aproximava-se. Estacionei à porta da vivenda. Atirei
uma pedra à casita do cão do vizinho, saiu a ladrar e o casal apareceu.
Dirigi-me à porta. Salomé, pálida e com olheiras, nem olhou. Abri a TV sem
som. Atendi à campainha. Um empregado do restaurante pousou a cesta, assinei
a factura e juntei gorjeta. Pus mesa para dois e o champanhe no balde do
gelo. De gelo era, de resto, o ambiente. Ninguém falou, comeu ou bebeu…
Depois da meia-noite o telemóvel tocou, deixei atender: – Não, não, está aqui
desde as 21 horas… ouviu e desligou. Enfiei as luvas,
tirei o diadema do bolso e atirei-lho para o colo: – Prometido é devido! Vi
que ia servir-se do telemóvel, prendi-lhe os pulsos enquanto rodeava o
pescoço com o outro braço… “Não mais traição!” – Senti o hióide estalar, o
corpo inerte caiu com a língua de fora. Uma boneca reles! As horas passaram.
O telemóvel tocou, atendi. O chefe Diogo queria falar com D. Salomé; detivera
Vicente por suspeita de roubo do diadema. Fora surpreendido na joalharia,
após o alarme soar, com um lote de gazuas e um laser, mas sem a jóia. Teimou
que encontrou a porta aberta e os objectos sobre a banda. Aguardavam ordem
para busca na sua habitação… “Veio para cá da província, tinha curso,
tirou-me o lugar… Isto há 69 dias, contados por mim, vejam só!” Tinha
apanhado o diadema. O segredo do roubo teria de ficar comigo, só comigo. Que
fazer? Tinha uma caixa de chocolates enviada pelo correio, com o papel de
embrulho ainda intacto, remetido pelo polícia; esvaziei o conteúdo, cortei
meia página do PÚBLICO para enrolar a jóia na caixa, atirando com o resto
para o cesto dos papéis; refiz o embrulho e pu-lo na caixa do correio. Atei
um cachecol na grade da janela do quarto e pendurei Salomé, sem esquecer o
banco caído – suicídio! Um pingo de sangue que rolara do canto da boca para o
sobrado foi lavado e seco… Certamente que cometi erros, já que perdera a
capacidade de decisão calculada. Não me importa. Era tempo de dar o fora…
Cheguei a casa e tomei dose dupla de soporífero… Acordei às 15h20, ao som de
pancadas na porta. Vesti-me e abri… Um par de algemas e acusação de roubo e
assassínio esperavam-me… A rádio de um carro que passava bradava a velha
canção: “Corre sem vela e sem leme, a nau que se vai perder…” A voz do
destino!... |
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©
DANIEL FALCÃO |
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