Publicação: “Público” Data: 2 de Maio de 2010 Campeonato Nacional 2010 Taça de Portugal 2010 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2010 PROVA Nº 5 (PARTE I) SMALUCO E OS IRMÃOS METRALHA Autor: Inspector Boavida O dia acordou
soturno, cinzento, frio, com o céu carregado de nuvens cor de chumbo,
grávidas de chuva, ameaçando descarregar bátegas de água grossa sobre a
cidade, mas Smaluco está radiante de contente. O
velho detective chispa felicidade pelos seus
cansados olhos, deixando perceber uma imensa ansiedade em cada gesto, em cada
movimento: a sua amada Natália conseguiu uma precária de quinze dias e
passará com ele o Natal e a passagem do ano! Mas… em toda a sua vida, a
alegria nunca veio só. Ela é sempre portadora de uma notícia, um
acontecimento, uma desdita que ensombra a sua ventura. Desta vez foi o toque
do telefone que trouxe a má nova. Nada diria que
aquele telefonema alteraria os seus planos para o reencontro com o grande
amor da sua vida longe do cárcere. O número que apareceu no visor do telefone
era o contacto de Nicolau, o amigo de infância em casa de quem havia
combinado encontrar-se com Natália e os quatro irmãos: Noel (assim chamado
devido às suas longas barbas brancas), Neves (por causa da sua paixão pelos
desportos de inverno), Costa (por força das suas longas temporadas na
Caparica) e Jaime (devido à crónica omissão dos apóstrofos no seu francês
macarrónico de emigrante de longa data), também vulgarmente conhecidos em
bloco por “os irmãos metralha”. Uma espécie de
grito sufocado, uns grunhidos indescritíveis, uma respiração ofegante, tudo
isto seguido de um breve e sepulcral silêncio, a que se sucederam uns batimentos fortes como se de uma mensagem
codificada se tratasse, foi o que Smaluco conseguiu
ouvir. Os batimentos eram intermediados por pausas mais acentuadas. Primeiro
ouviram-se dois batimentos, depois cinco, mais um, um outro ainda, mais sete,
e outros cinco. Após estes últimos batimentos, ouviu-se um barulho que
pareceu ser o de um corpo a cair. Depois foi então o silêncio total e
absoluto. Smaluco ainda gritou: Nicolau! Nicolau!
Mas, nada. Nem mais um ruído. Quando Smaluco estacionou o seu carro, a meia dúzia de metros do
prédio de Nicolau, as nuvens abriram os seus ferrolhos e deram espaço a uma
chuva pesada e densa, que molhou o detective quase
até aos ossos. A porta do edifício estava escancarada e o elevador
inoperacional. Galgadas as escadas até ao terceiro andar, Smaluco
encontrou a porta de casa de Nicolau entreaberta, sem quaisquer sinais de
arrombamento ou de ter sido forçada. O amigo jazia no chão da biblioteca,
degolado, caído perto da secretária, sobre uma grande poça de sangue. Havia
vestígios de pegadas. Lá fora, a chuva continuava a cair copiosamente e assim
ficaria até ao fim da noite. A Judiciária fez
deslocar três homens para o local. Um deles ficou na entrada do prédio,
controlando todos os movimentos de pessoas. Os outros dois iniciaram as
investigações. As pegadas denunciavam que duas pessoas tinham entrado e saído
de casa de Nicolau, sendo que uma delas regressou algum tempo depois. Os pés
maiores passaram por cima do sangue exposto sobre a alcatifa, quando a sua
expressão era mais ampla. Decerto que, nessa altura, a vítima já havia
sucumbido! Em cima da secretária faltava algo de configuração rectangular, que deixou a marca da sua ausência numa
mancha de sangue presente junto ao telefone. Tudo indicava que
Nicolau tentara denunciar os autores do homicídio pelos meios disponíveis,
usando os processos de comunicação que o seu estado permitia. O telefone
caído sobre a secretária, a pesada faca utilizada como arma do crime e a
caneta tombada junto ao corpo apresentavam apenas as impressões digitais da
vítima. Havia muito trabalho a fazer. Era necessário recolher todos os
indícios que pudessem ajudar a desvendar o que acontecera naquela casa. A
tarefa apresentava-se delicada mas, como dizem os mais acérrimos defensores
das forças de combate ao crime, não há nada que os profissionais da
investigação não consigam superar. O homem da PJ que
ficou de plantão junto à porta do prédio anunciou a chegada de uma mulher.
Era Natália Vaz que, na pressa de se reencontrar com o grande amor da sua
vida, fez sentir a dor imensa da saudade acumulada num grito arrancado do
mais fundo da alma e correu em frenesim para os braços de Smaluco.
De súbito, avisada do sucedido com o amigo Nicolau, o seu corpo pareceu gelar
mais frio do que a chuva que havia lavado a leve maquilhagem feita antes de rumar
àquele lugar. O dia começara por ser de festa e transformara-se de repente
numa jornada de tristeza, com a morte em fundo. Jaime, o emigrante
metralha, eterno desempregado sem profissão conhecida, e Costa, o mais novo e
menos activo do quarteto Vaz, foram também
anunciados. Chegaram alguns minutos após a irmã, separados entre si por
breves instantes. O primeiro trazia consigo duas garrafas de champanhe
francês e uma caixa de média dimensão. O segundo era portador de um bolo de
aniversário e de vários embrulhos de formatos diversos. As gabardines
de ambos conseguiram proteger aquilo a que chamaram “os mimos para o
Nicolau!”, mas foram incapazes de poupar da chuva a restante roupa que vestia
os dois irmãos e que se colara aos seus corpos. Dois toques, ao de
leve, na porta. Neves, o metralha mecânico e amante
dos desportos de inverno, entrou de sorriso rasgado a cantar os parabéns a
você. Durou pouco tempo a cantoria. Seguiu-se mais um anúncio. Noel, o metralha mais velho, actualmente
ao serviço de uma grande superfície comercial, onde aproveita as suas
companheiras renas, de fibra de vidro feitas, para esconder o que vai
furtando a quem dele se aproxima, entrou em casa de Nicolau pingando água das
suas longas barbas brancas, enquanto reproduzia os característicos sons
guturais do Pai Natal. Estavam reunidos todos os amigos que Nicolau havia
convidado para o seu aniversário. Smaluco olhou através da vidraça da janela da
biblioteca de Nicolau. Na sua frente, do outro lado da rua, as instalações do
antigo Regimento de Comandos da Amadora pareciam tristes e sem brilho, tão
distantes dos seus momentos áureos do pós-25 de Abril. O papel desempenhado
por aquela unidade militar e pelo seu controverso comandante nos tempos que
se seguiram à Revolução dos Cravos tinha sido, vezes amiúde, pomo de
discórdia nas relações de Natália e Smaluco.
Natália considerava o líder dos Comandos “um dos grandes heróis da nossa
jovem democracia” e o velho detective, por seu
lado, defendia que “ele fora o verdadeiro coveiro da Revolução”. Natália pareceu ler
os pensamentos do seu amado. Aproximou-se dele e envolveu-o num abraço terno
e apaixonado. Nada poderia ofuscar os seus breves dias de liberdade: nem os
fantasmas da Revolução de Abril e do fim do chamado Verão Quente, nem a cruel
morte de um dos seus mais queridos amigos, nem… nada! Um longo beijo selou
aquilo a que ela costumava chamar “um pacto de tolerância”. O silêncio gerado
por aquela manifestação de amor foi quebrado pelo ruído do ascensor que
trazia o médico legista. Smaluco olhou de novo para
o exterior e sorriu amargamente. Ele já sabia quem havia formado a dupla
assassina. E você, meu caro leitor? |
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©
DANIEL FALCÃO |
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