Publicação: “Público” Data: 14 de Fevereiro de 2010 Campeonato Nacional 2010 Taça de Portugal 2010 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2010 PROVA Nº 2 (PARTE II) O CASO DA JOSITA CORLI Autor: Medvet Numa manhã de
segunda-feira, 8 de Julho, o leiteiro que chegara ao nº 99 da Rua dos
Plátanos ficou surpreendido por notar a luz acesa, apesar de já serem sete
horas e o sol ir alto. Talvez fosse apenas a curiosidade que o fez espreitar
pela janela, atravessando um canteiro de flores recentemente cavado, mas mais
tarde disse ter sentido um estranho pressentimento. O leiteiro espreitou
através de um pequeno espaço deixado entre as cortinas corridas. Ao princípio
mal distinguiu um vulto de mulher esparramado numa cadeira, mas depois
conseguiu ver a sua face – uma máscara de sangue. Por um momento o
leiteiro ficou paralisado, mas depois, com um grito abafado de terror correu
rua abaixo, onde felizmente tropeçou com um polícia que fazia a sua ronda, a
quem contou a macabra descoberta. Voltaram os dois
para o 99 e tentaram entrar pela porta da frente, que estava fechada à chave.
Entretanto o leiteiro explicava ao polícia quem eram os habitantes da casa.
Tratava-se de uma mãe com duas filhas, estrangeiras, apesar de falarem muito
bem o português. O leiteiro sabia que a mãe e uma das filhas estiveram fora
durante o fim-de-semana, porque na sexta-feira anterior lhe pediram para
deixar apenas meio litro de leite no sábado e no domingo em vez do habitual
litro e meio, uma vez que a Senhora Corli e a sua
filha Dolores estariam fora até segunda-feira. Uma vez que a porta
da frente estava fechada, tentaram a das traseiras, que também estava
fechada. O polícia decidiu entrar por uma janela entreaberta na cave. A
figura na sala da frente era de facto a filha, Josita.
Tinha um revólver na mão direita e o cano descansava contra o que fora a
mandíbula; de facto, praticamente toda a metade inferior da cara fora
atingida pela descarga e não era um espectáculo
agradável. O polícia não
perdeu tempo a notificar a esquadra e em breve o Inspector
Fagundes apareceu no local. A opinião geral era a de que se tratava de
suicídio, mas Fagundes encontrou pormenores que lhe pareceu prudente
esclarecer. A Senhora Corli e a sua filha Dolores chegaram por volta do
meio-dia e ficaram horrorizadas com a notícia. Quando acalmaram o suficiente,
Fagundes inquiriu se haveria algum motivo para Josita
se matar. Não havia nenhum, que elas soubessem; era uma rapariga de temperamento
variável e por vezes instável, mas nos últimos tempos parecia ter assentado,
graças a um rapaz com quem parecia ter uma relação amorosa muito intensa,
chamado Ramon Perita. Sob pressão, no
entanto, Dolores admitiu que Josita em mais de uma
ocasião, durante um dos seus acessos de fúria, havia ameaçado matar-se, mas
ninguém dera muita atenção ao assunto. A mãe atribuíra isso a uma
manifestação de mau génio que não durava mais de cinco minutos. Na verdade Josita sempre acabava por ficar lavada em lágrimas e
pedia desculpa por ser tão tortuosa. Quando Fagundes
interrogou Ramon Perita, o namorado da vítima, este pareceu assombrado quando
lhe deram a notícia. Quando ele a deixara na noite anterior, ela parecera-lhe
bem, no seu habitual bom humor. Não era verdade que Josita
estava sempre a ter ataques de fúria. Um pouco leviana, fazendo olhinhos de
vez em quando a outros homens, nada de importante. Isso já tinha acabado, Josita tinha-lhe prometido deixar de olhar para outros
homens. No sábado anterior
tinham combinado ir ao cinema, mas ela não aparecera. No domingo à noite fora
a casa ver se tinha acontecido alguma coisa e ela contara-lhe que não se
sentira bem e tinha ido para a cama cedo. Não lhe mandara recado porque não
tinha modo de o fazer. Ela parecera-lhe bem no domingo à noite e devia estar
a sentir-se melhor. Tanto quanto sabia, não havia nada de especial no seu
espírito, nem podia imaginar uma razão para ela se matar. Deixara-a por volta
das dez e ela foi com ele até à porta, combinando encontrar-se com ele na
terça-feira seguinte à noite. O homem estava
mesmo transtornado, mas as suas palavras soavam verdadeiras. Pesquisas na
vizinhança confirmaram o seu depoimento até certo ponto. Uma das vizinhas
ouvira um som por volta das onze, mas parecera-lhe o escape de um carro. Aos
domingos à noite a Rua dos Plátanos tinha muito movimento. De resto, nos
últimos tempos tinha havido vários assaltos nas vizinhanças e todos estavam
um pouco em sobressalto – mas não deu muita importância, até porque o som lhe
parecera abafado e não ouvira mais nada. Josita era muito apreciada na vizinhança,
especialmente pelos homens, porque era muito bonita e sabia-o. Usava a sua
beleza para estontear os homens; o seu único defeito era apreciá-los demais.
Ainda no sábado anterior a vizinha a vira de braço dado com um jovem. A
senhora estava à entrada da casa, a tomar o fresco antes de se deitar. Vira o
par aproximar-se, parar à porta da rapariga e ouvira-a despedir-se com um
“Boa noite, Francisco; ver-nos-emos em breve.” A vizinha
estranhou, pois era suposto Josita andar com um tal
senhor Perita; pensava que o seu nome era Ramon, já a ouvira tratá-lo por Ray. Segundo o relatório
da autópsia, a moça estaria morta cerca de sete a oito horas antes da
descoberta do corpo, ou seja, a morte dera-se entre as onze e a meia-noite.
Talvez mesmo às onze, se o ruído ouvido pela vizinha fora um tiro. O homem visto no
sábado com a vítima foi encontrado sem dificuldade. A mãe da vítima
lembrara-se de um tal Francisco Peres com quem a filha andava antes de se
decidir por Perita. As suas declarações eram simples. Encontrara Josita por acaso nessa tarde e ela dissera-lhe que ia ter
com o namorado para irem ao cinema, mas após alguma insistência ele
convenceu-a a ir dar um passeio com ele em vez de se encontrar com Perita.
Passaram a maior parte do tempo num abrigo do parque. Ela pareceu-lhe
preocupada e mais tarde confidenciou-lhe a causa. Hesitava entre ele e
Perita. Ela gostava do namorado, mas ele podia ser fatigante por vezes. Ela
gostaria que ele de vez em quando mostrasse alguns ciúmes, mas para além de
se queixar quando ela falava de outros homens, ele não mostrava nenhum sinal
de emoção. Ela achava que ele gostaria mais dela se de vez em quando se
zangasse. Estava a pressioná-la para casarem em breve. Segundo Peres, ela
dissera que “se sentia tão mal com esta indecisão que por vezes pensava em
acabar com tudo”. Peres riu-se dela e conseguiu distraí-la dessa ideia, mas
agora achava que as palavras tinham um sentido mais sinistro do que julgara. O revólver era de
um tipo vulgar do exército, havendo muitas maneiras de a rapariga o ter
arranjado. Nem havia maneira de traçar a sua origem com alguma certeza. Nem a
mãe nem a irmã sabiam que Josita tinha uma arma –
mas isso nada provava. Dêem uma ajudinha ao Inspector
antes que fique completamente “passado”… A – Foi suicídio; B – Foi Ramon
Perita; C – Foi Francisco
Peres; D – Foram a mãe e a
irmã. |
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©
DANIEL FALCÃO |
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