Publicação: “Público” Data: 1 de Agosto de 2010 Campeonato Nacional 2010 Taça de Portugal 2010 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2010 PROVA Nº 8 (PARTE I) LECY ONARA Autor: Cardilio &
Avita A – …Então,
vizinha, não sabe o que dizem por aí? B – Não, não ouvi
dizer nada. A – Pois, olhe,
dizem que, afinal, a professora encontrada morta, ali no rio, há três
semanas, não se matou. Parece que foi um bicho, uma mosca ou lá o que foi,
que a picou, envenenou-lhe o sangue, fê-la cair ao rio e afogar-se. B – Coitadinha!...
O que disseram dela na altura!... Mas eu sempre disse que a senhora não ia
fazer uma coisa daquelas. A – Ora, ora. Isto…
quem vê caras, não vê corações. O que é certo é que ela tinha uma vida muito
complicada. B – É verdade, veio
a senhora de tão longe, lá da Itália, para vir aturar o que aturou aqui. Nota 1. Na
quarta-feira, dia 18 de Março de 2009, Lecy Onara, italiana de Tombolo,
professora de latim na Escola Secundária de Torres Novas, foi encontrada
submersa e retirada já sem vida das águas do Almonda, numa curva do rio em
que este mais se aproxima da rua de Trás-os-Muros, junto ao Castelo. Fora
vista, na sexta-feira anterior, depois das aulas, no supermercado. A vítima,
já instalada nesta cidade, conheceu Namet Oques, com quem vivia maritalmente. A – A começar pelo
marido, já sabemos. Dizem que ele para além de não chegar lá… ainda lhe dava
maus-tratos. A mim não me enganou ele. Assim que o vi, tirei-lhe logo o
retrato. Não podia nada ser boa rês. O que é que o Francês achou nisto, para
se vir aqui enfiar? B – Eu cá não sei
nada, mas o homem até era muito delicado para toda a gente. Tinha uns modos a
que não estávamos habituados, é verdade, mas no fundo parecia ser boa pessoa.
Parece que quem lhe falou nisto aqui foi um tal Alberto, que fazia versos,
com quem viveu algum tempo em Bruxelas. Quando eu ia ao Castelo, via-o sempre
por lá. Gostava muito das flores e do serpentear do rio pela cidade, por onde
dava grandes passeios a pé, apesar de sofrer do coração. Dizem mesmo que
conhecia melhor o rio do que as palmas das próprias mãos. Nota 2. Namet
Oques, esteta, dramaturgo e ensaísta, era um apaixonado por Portugal e por
portugueses. Apreciava o bacalhau, gostava do fado, das corridas à portuguesa
e dos forcados em especial. No dia 13, de manhã, partiu para um fim-de-semana
em Paris, tendo regressado na noite de segunda-feira, 16. Ficou surpreendido
por Lecy não estar em casa e ter deixado o Wooggy – o cão de que tanto
gostava – sem comida nem água. A casa estava num nojo. No dia seguinte, como
a mulher não aparecesse, Namet foi à polícia participar o seu
desaparecimento. Não podia usar telemóvel por causa do coração. A – Com quem se
dava muito bem, unha com carne, era com o Tó Trinete. B – Credo. Esse não
é esquisito, qualquer moeda lhe serve. Pelo menos é o que dizem. Nota 3.Tó Trinete,
mecânico de profissão, proprietário da oficina Sossu Kata, era um exímio
piloto de motas, já com muitos troféus conquistados com a sua Vaide Pressa,
uma maravilha da engenharia, saída da sua oficina. Afirmou que, na manhã de
terça-feira 17, Lecy lhe entregou o carro para revisão, tendo ficado
combinado que viria buscá-lo ao fim da tarde, mas ela não apareceu nem nunca
mais a viu, pelo que o carro ficou à sua espera. A – Quem não ganhou
nada com isto foi o outro, o estrangeiro que era colega dela na escola. Logo
que lhe cheirou a esturro, pôs-se ao fresco daqui para fora. B – Esse também não
me enganou. Veja lá, não largava a senhora, sem se preocupar com o falatório
que por aí corria acerca disso. Pelo menos, foi o que me disseram há tempos. Nota 4. Musk Uloso
era colega da falecida. Professor de desporto na mesma escola, mantinha uma
massa muscular bem tratada e invejável ainda para uma pessoa da sua idade.
Foi detido pela polícia em Paris quando, de regresso à sua Ilha, naquela
sexta-feira, ao princípio da noite, se preparava para apanhar o voo de
ligação para o Dubai. Disse logo ali que, se era por causa da morte da Lecy,
não tinha nada que ver com isso e mostrou uma carta que ela lhe tinha
escrito, na qual explicava as razões por que decidira pôr termo à vida. A – Quem conhecia
bem este fulano era o Zé Galão, que também é um bom figurão. De manhã, antes
das aulas, esta gente juntava-se na sua pastelaria para tomar o
pequeno-almoço. B – Sim. Às vezes,
era tão bruto no que lhe dizia que até vinham as lágrimas aos olhos da
coitada da senhora. Pelo menos, foi isso que espalhou por aí o Zé Galão, que,
diga-se de passagem, é pessoa que não interessa. Nota 5. Zé Galão é
uma figura típica da cidade. Na sua pastelaria junta-se gente de todas as
origens e condições. De manhã, antes das aulas, entre outros clientes,
chegavam os dois professores e, às vezes, o tipo era tão bruto que até
incomodava quem assistia. Noutro dia, ouviu-lhe dizer: “Não volto a dizer-te
isso! Tens de escolher, ou ele ou eu”. A professora Lecy ficou tão
aparvalhada que lhe vieram as lágrimas aos olhos. À tarde vinha o outro par.
O Tó, para o petisco, e o Namet, para o chá ou iogurte. A – Sabe que mais,
vizinha? Coitado de quem morre, seja lá do que for. B – Sim, sim. Mas,
com a crise que para aí vai, não tarda que seja coitado de quem cá fica. Nota 6. A
investigação foi célere e eficaz: 1 – Uma testemunha
afirmou que lhe pareceu ter visto Lecy no dia 17, à tardinha, no seu carro,
passar na zona da escola, não obstante ter faltado às aulas de segunda e
terça-feira. 2 – A carteira da
vítima foi encontrado nas imediações do local onde o corpo foi descoberto,
tendo no seu interior uma carta de despedida dactilografada e uma embalagem
vazia de comprimidos digoxina. 3 – O corpo de Lecy
apresentava um hematoma numa têmpora e o nariz em muito mau estado, coberto
com uma grande postela de sangue. Internamente, no corpo, não se detectaram
vestígios de drogas nem água do rio. 4 – Especialistas
da Universidade de Coimbra identificaram como terceiro ínstar de Calliphora vicina, a espécie de
grânulos esbranquiçados recolhidos internamente nas narinas da vítima. 5 – Mais tarde,
técnicas sofisticadas permitiram atribuir a origem de tais grânulos ao corpo
emurchecido encontrado no habitáculo do carro de Lecy Onara. A – O que mais me
incomoda nisto tudo é que já lá vai tanto tempo e ainda não descobriram o que
se passou. B – Tenha calma,
pois, se é como dizem, não tarda que no policiário ponham a coisa a nu. A – Credo, vizinha!
Que maneira de falar destas coisas… |
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©
DANIEL FALCÃO |
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