Publicação: “Público” Data: 10 de Outubro de 2010 Campeonato Nacional 2010 Taça de Portugal 2010 Provas
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CAMPEONATO
NACIONAL E TAÇA DE PORTUGAL 2010 SOLUÇÃO DA PROVA Nº 8 (PARTE I) LECY ONARA Autor: Cardilio &
Avita Lecy Onara tinha a
carta de condução há muito pouco tempo, mas era uma mulher desenrascada ao
volante. O pior era o carro. Um professor não ganha muito e isso, por vezes,
também se sente no trabalhar do motor. Naquele dia, 13 de Março de 2009, à
tarde, foi ao supermercado comprar comida para o cão e, de caminho, alguns
víveres para o fim-de-semana. Namet Oques tinha ido para Paris e Musk Uloso
regressara às Ilhas Salomão para tratar de assuntos pessoais, pelo que ia ficar
em casa sozinha durante o fim-de-semana. Iria aproveitar para corrigir os
trabalhos dos alunos e pôr em dia as leituras que tinha em atraso. Além
disso, iria analisar seriamente o que fazer à sua vida. Porém, no caminho,
alguma coisa não estava a correr bem, fazendo piscar a luz indicadora do óleo
do motor com o carro em andamento. Instintivamente, Lecy Onara reduziu a
marcha. Mas, mesmo assim, ao acelerar o carro, a luz continuou a piscar e só
quando o carro parou a luz se extinguiu. Como já era tarde e precisava do
carro no sábado, decidiu encostar na primeira oficina que encontrou. Tó Trinete já se
preparava para fechar a sua Sossu Kata. Mas, como era uma senhora,
condescendeu em atendê-la, só depois se apercebendo de quem se tratava.
Rapidamente a conversa azedou e começou a dar para o torto. Então, Tó
Trinete, não se contendo, agrediu a senhora com o que tinha mais à mão.
Surpreendida pelo ímpeto do ataque que lhe esmagou o nariz, Lecy Onara caiu
desamparada, batendo com a cabeça no chão, onde ficou imobilizada e sem
sinais de vida. Atarantado com o que acabava de protagonizar, To Trinete
fechou rapidamente a porta da oficina. Como pôde, levantou o corpo de Lecy
Onara e encerrou-o no próprio carro, que cobriu com um oleado. Fechou à chave
a porta da oficina e afastou-se para a rua. Transtornado, deambulou pela
cidade até altas horas da noite, antes de recolher a casa. Sabia que Namet
Oques e Musk Uloso estavam fora, pelo que, durante o fim-de-semana, teria
tempo para pensar na maneira de se livrar do corpo. No dia seguinte,
voltou à oficina, abriu a porta do carro e confirmou que a professora não
dava sinais de vida. Enojado, com uma palmada seca, matou a varejeira que
insistentemente entrava e saía das narinas da sua vítima. Removeu o corpo
para a bagageira, voltou a cobrir o carro com o oleado e saiu dali o mais
rapidamente que lhe foi possível. A situação era nova
para si e o desafio demasiado pesado para as suas capacidades. Por isso, na
segunda-feira, colocou um letreiro na porta a dizer: "Volto já", mas
não voltou à oficina durante todo o dia. Na terça-feira, de manhã, antes de
abrir a oficina, desorientado com a situação, voltou a deambular pela cidade,
na expectativa de encontrar uma solução para o sarilho em que estava metido.
Contudo, para complicar ainda mais as coisas, na pastelaria do Zé Galão,
soube que Namet Oques tinha comunicado à polícia o desaparecimento da mulher.
Por isso, ainda o Sol se escondia, pegou no carro de Lecy Onara, dirigiu-se
para uma zona do rio que sabia ser menos frequentada, esperou pelo momento
mais apropriado e lançou o corpo ao rio. Feito isto, afastou-se dali o mais
rapidamente de que foi capaz, arrecadou o carro na oficina e voltou a pé para
afogar as suas angústias no bar mais perto que encontrou. E, assim, se tramou
o Tó Trinete. A Calliphora vicina ou varejeira azul
deposita os ovos sobre feridas recentes de cadáveres. Em condições
apropriadas, cerca de 92 horas após a eclosão dos ovos, atinge-se a terceira
fase larvar ou terceiro ínstar. Assim, pode concluir-se que os ovos terão
sido postos uns dias antes do corpo ter sido lançado ao rio, tornando
plausível que a morte de Lecy tenha ocorrido na sexta-feira, depois dela ter
saído do supermercado. Como ninguém se lança ao rio depois de morto, Lecy já
estaria morta antes de cair na água, como se confirma pelo facto de, estando
submersa, não ter água nos pulmões. Por isso, Tó Trinete, ao afirmar que Lecy
lhe entregou o carro na terça-feira, mentiu. Mentiu para defender ou tramar
quem? Nada liga o Zé Galão ao que se passou. Musk saiu na sexta-feira para
Paris, onde foi interceptado ao princípio da noite, pelo que não teria tido
tempo para matar Lecy e muito menos poderia ser ele a deitá-la, mais tarde,
ao rio. Namet foi para Paris, de manhã, pelo que não poderia ter morto Lecy,
que foi vista de tarde com vida no supermercado. Mas, dadas as suas relações
com Tó Trinete, ainda poderíamos suspeitar que poderia ter tido alguma
cumplicidade no caso ou que Tó, sabendo dos seus movimentos, o procurou
incriminar. No entanto, a naturalidade do seu regresso e o modo e
circunstâncias em que agiu tornam inverosímil que soubesse o que se tinha
passado na sua ausência e comprometem seriamente o seu amigo. Por isso, Tó
Trinete só pode ter mentido para se defender, mas a presença do cadáver da
mosca no habitáculo do carro de Lecy guardado na sua oficina deixou Tó
Trinete sem saída, pois mostrou que Lecy já era cadáver quando saiu do carro.
E, assim, se incriminou o Tó Trinete. Podem agora as vizinhas ficar
sossegadas. |
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©
DANIEL FALCÃO |
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