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DE CONTOS POLICIAIS UM CASO POLICIAL NO NATAL |
A MINHA NOITE DE NATAL Paulo A
conversa saltava entre as pessoas sentadas na mesa, musicada pelos risos e
pelo som dos talheres sobre os pratos. Era, para eles, uma ceia de Natal
igual a tantas outras, mas, para mim, seria diferente. Eram
mais quatro pessoas sentadas à mesa. A Fátima, minha esposa, o meu irmão
Rodrigo, a cônjuge Germana, todos nós entre os quarenta e os quarenta e cinco
anos, e o Miguel, o meu sobrinho, com os seus treze aniversários já
cumpridos. Como em todos os dezembros anteriores, juntávamo-nos para celebrar
o Natal, ou melhor, ano sim, ano não, porque nos de data par, eu e a minha
esposa passávamos as festividades natalícias em casa dos meus sogros, assim
como o Rodrigo fazia o mesmo em casa dos pais da Germana. As mortes do meu
pai e da minha mãe num acidente de automóvel, havia dezoito meses, fizeram
com que a mesa dos anos ímpares ficasse reduzida àqueles que lá nos
encontrávamos sentados neste ano. Enquanto
as restantes pessoas iam comendo o tradicional bacalhau cozido com batatas e
couves, eu, parecendo participar de uma alegre reunião familiar, conjeturava
sobre o meu futuro. Enquanto as luzes de Natal iam piscando no arremedo
plástico de árvore, eu pensava em tudo o que planeara e que iria mudar o rumo
da minha vida. Eu
iria voltar a ter futuro. Iria ficar livre da Fátima; daquela voz sempre
crítica para os meus atos; daquele sorriso constantemente trocista para os
meus desejos; daquela arrogância com que ela se impunha à
minha vontade; daquele desprezo com que respondera a uma abordagem que eu lhe
fizera de separação; daquela falsa amabilidade que iludia todos os que com
ela contactavam e que era confundida com simpatia. Naquela
mesa, ela dominava a conversa, era o centro das atenções, falando do seu
trabalho, da sua casa e da sua árvore de Natal, que ela iluminara e
enfeitara, e que estava erguida no canto da sala. De mim, não falava. Eu não
contava. Eu
ouvia a sua voz, sobrepondo-se à minha e à de cada
um dos presentes, mas sabia que essa voz se calaria dentro de pouco tempo.
Sabia que seria a sua arrogância que a levaria à morte. Seria o seu costume
de se colocar sempre em primeiro, de querer para si o melhor, de ter que
ultrapassar tudo e todos, desde que fosse em seu proveito, que lhe seria
fatal. Estava tudo planeado, e nada melhor do que uma noite de Natal para a
matar, para deixar ficar na minha memória o sucesso de todos os passos que eu
tantas vezes imaginara e que agora iriam ter o seu apogeu na morte dela. O
brinde à saúde de todos fez-me rir interiormente. Não deixei de fazer a
vontade ao meu irmão, mas eu sabia que a saúde da Fátima não era algo que eu
desejasse, nem era algo que viesse a perdurar nos tempos mais próximos. Quase
que me apetecia brindar à sua morte, no entanto, eu teria que manter as
aparências. Era fundamental aquele meu contributo cortês, para não mostrar o
que a minha mente pensava. Se ela fingia para o resto da família, eu ainda
faria melhor. Iria ser um Natal memorável. Claro
que havia sobremesas, mas não existia colesterol que nos impedisse de
celebrar condignamente aquela noite. Os ginásios tinham a sua utilidade. Uma
delas era darem a permissão aos pequenos abusos alimentares, como os que se
perpetravam nestes últimos dias de dezembro e que duravam até ao início do
novo ano. A
Fátima não falhava em nada. Era Natal, e por isso a mesa tinha que ter as
tradicionais filhoses, as natalícias rabanadas, o indispensável bolo-rei, que
os tempos foram fazendo recuar desde o Dia de Reis até ao Natal, e todo um
outro conjunto de doces que ela fizera, como fosse um bolo, com uns
ingredientes que não revelava, dizendo que era um segredo familiar, e que eu
iria converter num segredo eterno, uma mousse de chocolate e arroz doce. Um
bocadinho deste, um torrãozinho daquele, era a linguagem usada para acumular
os doces no prato da sobremesa. E assim, iam todos falando e sorrindo, não
deixando, também eu, de contribuir para a festa, nem de provar os diferentes
doces. Na
nossa casa, nesta época tão marcada por alguns símbolos, não havia Pai-Natal
nem o tradicional Menino Jesus. A idade do meu sobrinho Miguel já há muito
deixara para trás essas personagens. Agora, apenas alguns presentes
aguardavam, sob a árvore que a Fátima iluminara. Esperavam que os abríssemos
e fizéssemos trocas, fingindo uma surpresa e um interesse que não existiam
acerca do que cada um recebia. Mas
este ano não chegaríamos a essa atividade. Antes disso, eu teria que ver o
meu plano funcionar. Iria suceder aquela cadência de passos delineados, que
eu imaginara darem certos, e, desse modo, terminar com a vida da Fátima. Ela
perguntou quem queria café. Era aqui que começava a fase crítica. Aquela em
que eu confiara no conhecimento que tinha sobre a Fátima, e que me permitira
construir um conjunto sequencial de etapas que levariam à sua morte. Tinha
sido um planeamento meticuloso, aquele que eu fizera. Uma construção feita
com base num conhecimento acumulado ao longo dos muitos anos de convívio. A
máquina de café estava na cozinha, assim como os pequenos recipientes de
variadas cores, contendo no seu interior o mágico pó castanho. Daquele café
que ela gostava, havia só uma cápsula na caixa e em casa. Ela não abdicava
daquele aroma, e eu fizera tudo, ao longo dos últimos dias, para deixar só
uma dose. Aquela que o seu egoísmo não permitiria que fosse para mais
ninguém. Todos,
com exceção do Miguel, queriam café, como eu já esperava. Claro
que a Fátima disse que ia preparar os expressos para toda gente. Eu sabia que
iria ser desse modo. Ela era a mulher perfeita; aquela que nunca errava.
Também não seria ali que iria falhar. Seria ela a provocar a sua própria
morte. Durante
a tarde, eu colocara o veneno na cápsula, usando uma seringa. Lá, ficaria à
espera de entrar no organismo da Fátima. Era o único café com o seu aroma favorito.
O único de que ela gostava e que, por isso, não deixaria que fosse para mais
ninguém. Desfazer-me
do que restava do material letal, fora fácil. Uma saída de automóvel, ao
supermercado, para comprar umas quaisquer inutilidades: lâminas de barbear,
uma esferográfica azul e pasta de dentes, e com isso trazer dois ingredientes
de última hora pedidos pela Fátima, tinham-me conduzido a um contentor de
lixo, bem afastado de casa, onde o frasco com os restos do veneno e a seringa
tinham sido deixados. Os
meus olhos saltitavam entre as luzes de Natal, o meu irmão, a minha cunhada,
o meu sobrinho e a Fátima, que se levantava da mesa para ir buscar o café. Embora
eu me quisesse manter calmo, o meu coração batia muito mais rapidamente.
Aproximava-se o momento; aquele que seria o meu Natal; aquele em que eu
nasceria de novo, perante a morte da Fátima. Acreditava
que o seu egoísmo a levaria à morte. Mesmo havendo riscos para mim, para a
Germana e para o Rodrigo, eu confiava. Acreditava na minha intuição, no que eu
sabia, no meu plano e, principalmente, no egocentrismo da Fátima. O
seu café teria que ser o mais quente quando chegasse à mesa. Ela não deixaria
de o fazer. Fazia-o sempre. Ninguém corria o risco de levar com os resíduos
do veneno que ela teria na chávena. O seu café seria o último que ela
extrairia. Ouvi
a máquina a trabalhar, e, pouco depois, a Fátima entrou na sala transportando
uma bandeja com as quatro chávenas, que distribuiu. Ela sabia bem qual teria
que ser a sua. Enquanto
eu e o Rodrigo colocávamos açúcar e mexíamos, as nossas esposas, gostavam de
beber o café sem qualquer aditivo doce. Foi o que sucedeu. Eu,
com uma colher, agitava a solução escura que estava na minha chávena,
tentando não mostrar ansiedade, e elas ingeriam o aromático líquido castanho.
Tudo decorria como eu previra. Foi
enquanto eu bebia o meu café, que a Fátima mostrou um esgar de dor, deitou as
mãos ao ventre e tombou sobre a mesa, com uma ligeira espuma branca a
sair-lhe da boca. Virei-me para o seu lado, enquanto gritava para que o meu
irmão telefonasse para o 112. Eu
sabia que ela estava viva. Eu sabia que ela estava inconsciente e não
recuperaria. Eu sabia que ela iria morrer, mas também previa que tal só
sucederia no hospital, e que, desse modo, eu teria tempo para eliminar os
últimos traços do crime. Não se é médico impunemente. Só
depois da sua morte e da identificação da causa que a provocara, surgiria a
polícia. Eu ainda tinha tempo. O
veneno iria aparecer na chávena, mas, sobre isso, eu não me importava. Fora
ela que o ingerira, sem ajuda. Os
socorros não demoraram a chegar. E estavam com cara de quem não gostou de ser
incomodado naquela noite. Vieram num carro da emergência, com um médico, e
numa ambulância que transportou imediatamente a Fátima para as urgências
hospitalares. Disse
ao meu irmão que também eu iria para o hospital, o que teve como consequência
a rápida partida dele, da esposa e do filho para casa onde moravam; também o
fizeram para retirar o Miguel daquele ambiente trágico. Sucedeu como eu
planeara. Sozinho,
retirei da máquina a cápsula fatal. No recipiente onde caíam as que tinham
sido usadas, estava mais uma do mesmo aroma, já desde o almoço. Depois, enchi
o depósito da água e fi-la sair como quem tira café, durante cerca de dez
minutos. Foram quatro depósitos cheios. Seriam mais do que suficientes para
tirar da máquina os restos do veneno. Deitei a água extraída na sanita e fiz
com que fosse para o esgoto. Lavei bem o recipiente de recolha da água.
Depois, sequei-o com um pano e arrumei-o. Só
tinha que ir para onde, anteriormente, eu dissera que iria. Pelo caminho,
deixei a cápsula usada, a que continha o veneno, num remoto contentor do
lixo. Jamais seria encontrada. Terminados
estes passos, as batidas do meu coração começaram a regularizar e dirigi-me para
o hospital, agora, de modo efetivo, sabendo que mais tarde ou mais cedo me
iria ser comunicada a morte da Fátima. Era,
nos últimos anos, a minha noite de Natal mais feliz. Eu nascia de novo. Era o
meu Natal. A minha noite de Natal!
Fonte: Local do Crime, 5 de Fevereiro de 2024 |
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© DANIEL FALCÃO |
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