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A MORTE DO PAI NATAL…

Paulo

Os chuviscos não lhe travavam nem aceleravam o passo. Na rua, onde se cruzava com as outras pessoas com os seus guarda-chuvas abertos, ele seguia exposto à ligeira intempérie que se abatera sobre a cidade, ou, pelo menos, sobre aquela parte da urbe. Esses chuviscos nada tinham de estranho. No dia vinte e três de dezembro, era normal que a chuva caísse, ou as nuvens pontuassem o céu com a ameaça de alguma bátega. Era inverno.

Não sabia se havia nuvens. Enquanto a Terra, no seu rodar, não empurrara o Sol para o outro lado do planeta, constatara o aspeto plúmbeo do teto que cobrira toda a região celeste que os seus olhos avistavam, mas, à medida que a noite avançara, deixara de poder observar o céu, e agora apenas aquela morrinha que se abatia sobre si, e sobre todos, era sinal de que teria que haver uma cobertura nebulosa naquele local.

Mas as características dessa cobertura não o ocupavam nem lhe mereciam o menor interesse. Caminhava, colocando um pé atrás do outro, num movimento mecanizado que efetuava sem premeditação, sobre a rua plena de lojas abertas, com montras cheias de árvores de natal e outros enfeites, onde se acentuavam as cores vermelhas e verdes, marcando a época que decorria e o dia que se aproximava. Cada montra que surgia, parecia mais exuberante que a anterior, na expectativa de fazer um apelo aos passantes, transformando-os em clientes que pudessem aumentar as receitas daquele espaço comercial. Era a lei da concorrência na sua força total, mascarando um Natal que se pretendia que fosse a época da fraternidade e da solidariedade.

Caminhava sem se aperceber da luminosidade pendurada sobre a sua cabeça. Eram pequenas luzes de várias cores, enfeitando suportes suspensos com as formas de estrelas, de folhas de uma árvore que não se percebia qual era, de silhuetas de árvores de natal, de bolas, de sinos e, por vezes, de umas pequenas entidades que se propunha que fossem anjos. Eram os enfeites de Natal que decoravam a rua, colocados pela câmara municipal, que numa travessa perpendicular, onde quase não existia comércio, já não colocara as luzes decorativas. O importante era que os clientes das lojas ficassem iluminados. Nas outras ruas não existia Natal. Se não existiam compradores, o Natal não era relevante. Podia dizer-se que era o Natal das compras. Era o Natal no seu máximo esplendor.

Estes pensamentos iam cruzando a mente do homem que caminhava, ou melhor, que avançava naqueles passos de sentido único, naquele movimento maquinal de quem percorrera múltiplas vezes aquele mesmo passeio de pedras polidas e molhadas, que poderiam levar ao fácil escorregamento dos passantes mais descontraídos.

Entre os dois passeios, na rua de chão negro, iam passando automóveis. Lentamente, sendo obrigados a parar nas frequentes passadeiras onde os muitos peões atravessavam a rua, seguiam nos dois sentidos, como se esse movimento fosse importante para o equilíbrio daquele espaço.

O homem não tinha um aspeto normal. Talvez, naquele tempo que decorria, se pudesse considerar mais frequente, mas não era esse pormenor, transportado pelo calendário, que dava à roupa e ao aspeto do homem a normalidade que parecia transparecer nos outros transeuntes.

A sua roupa era vermelha. Um casaco vermelho e umas calças vermelhas, que davam para perceber não ser a sua roupa principal. Era evidente, até pela ligeireza do tecido, pouco eficaz para as baixas temperaturas da época, que outra roupa se alojava por debaixo daquele fato vermelho. Umas botas pretas enfiavam-se sob as pernas das calças, parecendo ser, contrariamente ao restante vestuário exposto, mais adequadas ao clima, como o mostrava o forro branco que transbordava no cano que subia ligeiramente acima do tornozelo, que estava meio tapado pelas calças, só ficando visível no dobrar da perna para cumprimento dos passos que transportavam o homem ao longo da rua.

Na cabeça, um barrete vermelho, orlado de pelos brancos, com a cúpula ligeiramente tombada, onde aparecia uma bola de pelo, também branco, no cocuruto, completava o vestuário. Uma barba postiça, longa, de cor branca, com alguns centímetros de comprimento, escondia um rosto de cinquenta e seis anos.

O homem era um Pai Natal, ou melhor, assim se encontrava vestido. Se tal vestuário surgia com frequência por aqueles dias, já o mesmo não se poderia dizer do facto de se andar vestido daquela forma pela rua. O fato era para ser usado no espaço e no tempo para o qual se era contratado. Após o serviço estar cumprido, deveria ser a vestimenta retirada, e surgiria um ser humano de rosto e vestes normais que iria confundir-se com a multidão.

Não era aquele o caso. O indivíduo não tirara o seu fato de trabalho. Deslocava-se para casa vestido daquele modo que o fazia notado entre a massa móvel de pessoas.

A roupa era o principal indício de que algo de estranho se passava, mas não era o único. Não era a admiração de ver um pai natal a caminhar pela rua que deveria causar estranheza, mas deveria ser com o indivíduo que estava sob aquele fato que deveriam surgir as preocupações. Quem fixasse o seu olhar vazio, indiferente e distante deveria ficar inquieto.

O homem passara o dia a deixar-se fotografar junto de crianças e alguns adultos no Centro Comercial onde conseguira aquele trabalho. Conseguira aquele serviço onde ganhava pouco mais do que aquilo de que precisava para se alimentar, mas que terminaria no dia de Natal.

Fora ele o único a querer aquele trabalho. Não se poderia falar de querer, porque ele não quisera, mas nada mais lhe surgira para poder fazer. Não era pai natal porque gostasse, era pai natal porque precisava de sobreviver. Porque precisava de comer.

Voltava para casa. Um quarto, uma cozinha e uma casa de banho, numa casa centenária, num velho bairro. A renda era baixa, mas nem mesmo assim ele a conseguia pagar. De nada interessava o valor do pagamento ser reduzido, se não existia dinheiro para o fazer. O despejo aguardava-o no fim do mês, e apenas a rua lhe poderia servir de abrigo.

Não tinha família. Não tinha companheira nem filhos, e os outros parentes, há muito tempo que se tinha afastado deles, ou eles é que teriam afastado, – nunca percebera bem o que sucedera –. Os amigos, se alguma vez os tivera, tinham-se perdido nos degraus da ingreme escadaria que era a sua vida. Restavam-lhe só, e por pouco tempo, o pequeno apartamento que habitava e ele próprio. Era ele, só no mundo, sem mais ninguém: sem os gritos das pessoas que o circundavam durante o dia, os risos das crianças que se deixavam fotografar, umas com medo e outras sem receio, e sem as luzes e o calor do Centro Comercial.

Os seus pés moviam-se sobre a rua, mas os pensamentos na sua cabeça não paravam. Ninguém percebia o que era a solidão se não a sentisse, ninguém sentia a falta de carinho se não o experimentasse, e ninguém entendia o que era a fome se não olhasse um prato que não recebia alimentos. Mas ele sabia o que eram a fome, a solidão, a tristeza, assim como a ausência de uma voz, ou de uma mão, que transportasse amizade. Ele vivia tudo isso, e todas as ideias que produziam ficavam misturadas numa torrente caótica que lhe monopolizava o pensamento.

O homem vestido de Pai Natal entrou na boca que se abria na rua, esquecendo os olhares que alguns transeuntes faziam quando passavam por quem tão estranho vestuário usava naquela hora e naquele local. Desceu os degraus que conduziam ao cais onde o metro chegaria dentro de poucos minutos. Algumas das pessoas que esperavam, de pé, olharam-no, primeiro curiosas, depois lançando um sorriso de condescendência. Não via compreensão nos olhos que o miravam.

Uma criança, talvez de seis ou sete anos, que agarrava uma mão, da sua mãe, também o olhou. De olhos inexpressivos. Não tinham curiosidade, não tinham complacência nem apreensão. Era apenas um olhar, de uns olhos muito abertos que não o largavam.

Pareceu-lhe ouvir o metro a aproximar-se ao fundo do escuro túnel. Aproximou-se da berma do cais e, quando a frente impante da carruagem se aproximou, diminuindo a velocidade, saltou para a linha.

Ouviram-se gritos, muitos gritos, mas a paragem da frente do comboio cerca de sessenta metros adiante, não deixou dúvidas sobre o desfecho.

O homem vestido de pai natal já não conseguiu ouvir os gritos, nem os freios do metro a atuarem violentamente, nem o bulício de quem esperava poder seguir viagem, nem as palavras da criança com o olhar inexpressivo.

– Mãe, aquele Pai Natal não era o verdadeiro, pois não?

– Não filho, não era! – Fez uma pausa. – Porque dizes isso?

– Porque o Pai Natal não morre!

 

 

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Fonte: Local do Crime, 5 de Julho de 2024

© DANIEL FALCÃO