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CONCURSO DE CONTOS POLICIAIS

UM CASO POLICIAL NO NATAL

YHWH

L. Manuel F. Rodrigues

Dia de Consoada, em Burgau, finais dos anos 60.

Como habitualmente o Senhor Zeferino, um denominado vidente da aldeia de Burgau, na parte da tarde, esperava a visita do seu cliente preferido… o Luiz que o procurava para ler as crónicas rascunhadas em sebentas com folhas amarelecidas… e desta vez, ao ver o menino chegar à sua barraquinha… atirou de chofre:

– Olá, Luiz! Já sei o que pretendes! Toma lá, para ler, mais uma crónica do futuro… esta vai ser produzida no ano de 2007 e irás gostar certamente!

Os olhos do garoto arregalaram-se… recebeu o caderno, sentou-se no banco habitual e pôs-se a ler a nova crónica do Senhor Zeferino… que desta vez tinha um título muito esquisito… “YHWH”… que significaria aquilo… (!?) e como o Luiz adorava os nomes das crónicas que indiciavam o seu conteúdo!

A NOITE estava fria! Saíra à rua sem qualquer razão… foi por instinto sem qualquer intuito furtivo. Ia fazer não sabia o quê… A neve suspendera de surpresa a sua precipitação gélida e diáfana, por isso ele resolvera ausentar-se temporariamente do aconchego do lar e embrenhar-se na fuligem da noite onde as ruas e as árvores que as circundavam, bastante iluminadas, com luzes cintilantes e coloridas de efeitos natalícios, não conseguiam completamente ofuscar!

Todavia, ostentava no rosto uma espécie de competição íntima… Para trás deixara a mulher e as suas três filhas a deliciarem-se com as tarefas domésticas, triviais em vésperas de Natal. Filhós, bacalhau, polvo, couves, sonhos e outras coisas mais entre gritos de “passa-me a farinha”, “vai-me buscar o óleo à despensa”, “não te esqueças dos ovos”, “as batatas já estão descascadas?”, “ai que me queimei…

E foi precisamente neste interregno dos preparativos da consoada que ao espreitar pela janela se aprestou a vestir a bastante usada samarra e sorrateiramente decidiu-se a ir dar uma volta… Pretendia estar só para provar a si próprio, uma mania e ousadia (!), que sozinho é que se está bem, contrariando as inúmeras teses de vários colegas de profissão e amigos que se lamentavam frequentemente de viver sem companhia… solteiros, viúvos, divorciados, entre outros. “Quão dolorosa é esta vida”, diziam eles. Com uma família de cinco pessoas, ele replicava: Qual quê!? Sozinhos é que vocês estão bem… Ninguém vos chateia… Tomara eu…!

Era este o seu desafio… estar só naquele momento para provar que ele é que tinha razão.

-----oooOooo-----

Olhou de soslaio para o seu carro estacionado, semicoberto de geada e pôs-se a pé… Atravessou a estrada e subiu a avenida. Andou absorto alguns metros, ao acaso, até que avistou, num recanto, uns vultos na escuridão que pareciam estar em rebuliço... e de repente ouviu um grito baixo, rouco e abafado solicitando “socorro”! Correu na direção daquilo que lhe pareciam ser... três pessoas! Duas de braços e mãos no ar envolvendo uma outra que aparentava estar a ser atacada prostrada de joelhos! Na sua aceleração gritou: “Eh! O que se passa aí!?”... Os supostos assaltantes ao ouvirem a sua voz puseram-se em fuga! Ao aproximar-se do agredido ao ver o seu estado lastimável, comentou para o indivíduo:

Mas, o senhor está ébrio, sem dúvida!” – concluiu.

E continuou a conversa:

– Então, amigo, quem eram aqueles?... O que faz por aqui?...

Hic, sim, não tenho ninguém para me acompanhar na noite de Natal… E ainda por cima aqueles dois... levaram-me a carteira com o pouco dinheiro que ainda tinha!

Ficou cismático, mas respondeu, convicto...

– Ora, então devia sentir-se radiante, excetuando o assalto, sozinhos é que estamos bem… – comentou.

– Não diga isso homem, eu vivo só há muito tempo, depois de uma vida feliz com mulher e filhos e não sei o que hei de fazer à minha vida…! desabafou o estranho e continuou…

– Olhe, neste momento, só tenho esta companhia (exibiu uma garrafa de whisky na mão esquerda) e já estive a comer uma pizza numa pizzaria! Você lá sabe o que é estar só em casa, sem ninguém!? Chegamos lá, à noite, a mesma está fria, gelada, sem uma ponta de mimo, sem calor humano… nem me apetece confecionar comida. Janto sandes e coisas enlatadas. Às vezes nem mudo de roupa, sento-me no sofá vejo televisão e adormeço… De manhã acordo, lavo a cara e vou para o trabalho… Não me apetece fazer nada e a casa está sempre suja, desarrumada, húmida… Quem me dera que a minha mulher voltasse para mim e me devolvesse os meus filhos… É que isto de estar e viver só, tem muito que se lhe diga… uma coisa é querermos estar sós, sabendo conscientemente que temos família em casa… há sempre o regresso e a família lá está à nossa espera, mesmo havendo discussões e muitas arrelias… outra coisa é estarmos e permanecermos realmente sós e vivermos sem qualquer companhia!!! Não desejo isto a ninguém. É horrível. É uma miséria…

Ele ouviu, primeiramente perplexo e depois sereno, esta comunicação de desgostos daquele homem desconhecido e abruptamente como que atingido por um vislumbre fulminante retorquiu:

– Oh, homem, venha daí vamos passar a consoada a minha casa!...

Esquecera-se completamente do propósito da sua misteriosa saída noturna. Caminharam juntos até à sua residência. A porta cá em baixo estava entreaberta… estranhou porque ficava sempre trancada! Subiram as escadas e chegaram ao seu 2.º andar esquerdo daquele prédio trintenário… Ele à frente, como um cicerone qualificável, o solitário na retaguarda. Colocou as mãos num dos bolsos do agasalhado vestuário em busca da chave da porta e curiosamente não a encontrou… Voltou-se para trás e comentou para o seu novo amigo:

– Não compreendo, quase jurava que tinha o porta-chaves no bolso! Não faz mal, tocamos à campainha.

E assim sucedeu em simultâneo com um último desabafo:

– Amigo, prepare-se para a confusão… vai voltar a gostar de ficar só!...

Trimtrim… (som da campainha).

A porta abriu-se e deu de caras com a esposa.

– Amigo, venha daí... – exclamou virando-se para trás… Não viu ninguém... (!?) Estava só! Ficou estupefacto! Que coisa... O homem tinha desaparecido...!

Proclama a mulher, perante a perturbação e o rosto pasmado do marido:

– Oh, homem, saíste!?... O que é que tens, o que foi!? Parece que viste um fantasma?? – interrogou-se.

– Hem!? Não, nada, eu… não foi nada… fui só até lá fora espairecer… – justificou-se.

-----oooOooo-----

Entrou de ombros encolhidos e despiu a pesada e confortável samarra enquanto o seu odor preferido de bacalhau cozido com batatas se expandia pelo hall de entrada. Olhou novamente para a porta de acesso ao seu lar, doce lar (!?) e mantendo-se intrigado, depressa o mistério se desvaneceu proferindo de seguida para as filhas que estavam na cozinha:

– Queridas, vamos ao bacalhauzinho que deve estar delicioso, como sempre…!

Entrou na sala e aconchegou-se no sofá, a televisão estava ligada. Antes de se sentar à mesa e enquanto meditava no sucedido olhou para a deslumbrante árvore de Natal da família – era repetidamente a mesma, na última dezena de anos! – e lá observou com um sorriso matreiro os embrulhinhos da praxe a si destinados… De certeza, mais uma vez, as prendas da garrafinha do tinto especial e o aftershave juntamente com a água-de-colónia de marca, para não lembrar das peúgas e cuecas, estavam prontinhas para serem desembrulhadas…!

Mas, primeiro, havia que degustar o tentador e irrepreensível fiel-amigo!!

-----oooOooo-----

Entram na sala de rompante com as travessas na mão, compostas de suculenta comida, as suas três filhas e exclamam num misto de irritação e carinho, em uníssono:

– Papá, ainda não te descalçaste…!?!

Natal de 2007

 

 

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Fonte: Local do Crime, 20 de Maio de 2024

© DANIEL FALCÃO