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CONCURSO DE CONTOS POLICIAIS

UM CASO POLICIAL NO NATAL

AMEM-SE UNS AOS OUTROS

Inspetor Moscardo

O espírito da paz entrara no íntimo de toda a gente. Era a véspera de Natal.

Filipe relera um versículo bíblico: “Amem-se uns aos outros. Como eu os amei”.

Tão longe, se encontravam as coisas do mundo, do conteúdo, desse mandamento.

Pensando nisso, uma destruidora amargura espalhou-se dentro de si.

As adversidades ocorridas pela vida, saltaram do fosso das masmorras do alheamento, e cercaram-no ali, dentro de sua casa, a casa que ele recuperara com dificuldades, e dentro da qual esperava os seus familiares para a consoada.

Solteiro, no ano que passara, subjugara-o um agreste isolamento, uma sensação de incómodo constante, de imparidade sombria.

Uma amiga dissera-lhe:

– És a perfeita natureza morta, da imperfeita solidão viva.

Respondeu-lhe algo, que não desse a entender, precisamente, que não tinha entendido.

Anos mais tarde, soube que afinal, a amiga queria mesmo perceber, é que ele, não tinha percebido.

Neste Natal convidara para a consoada, os irmãos e os sobrinhos.

Armara a árvore com os presentes à volta, e uma serpentina de pequenas lâmpadas, a acender e a apagar, ao redor da copa.

Aguardava que chegassem, e tencionava depois da ceia, irem à missa do galo.

O seu telemóvel tocou, uma videochamada, era o seu irmão mais novo.

Perguntou-lhe como se encontrava de saúde, e se, se andava a sair bem, na empresa onde trabalhava em informática. Do melhor respondeu-lhe. Na chamada IA, estou entre os primeiros.

E disse-lhe o irmão que a esposa, os meninos e ele próprio, encontravam-se também bem – apontou para eles a câmara do telemóvel, – mas lamentavelmente, não poderiam passar a consoada com ele, porque os sogros fizeram finca pé, e quase os “obrigaram” a passar a noite com eles.

Notando a sua deceção, disse-lhe o irmão que ficariam para a passagem de ano. Que contasse com eles para o ano novo.

Não conseguira disfarçar a seu desapontamento.

Ligou a televisão. Iria dar umas boas gargalhadas a ver o filme “Sozinho em Casa”. Distraído como sempre, não reparara que o filme desta vez, não fazia parte da programação natalícia.

Entretanto ligou o seu outro irmão, e também, por um motivo de última hora, não poderia também estar presente.

Uma angústia sem explicação, se alastrou pelo âmago da sua alma. E decidiu-se a beber qualquer coisa.

Passaria a noite sozinho.

Pegou na bíblia, folheou-a e abriu-a ao acaso. Leu:

– “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam”.

Lembrou-se então do senhor regedor, com quem tivera alguns litígios.

Tinha ele praticamente toda família emigrada. Em França uns, Suíça e Luxemburgo outros, e só vinham à mãe Pátria, de vacances no verão.

Provavelmente estaria nas mesmas circunstâncias.

(O regedor era pouco religioso. Não frequentavam a missa.)

Reparou na fantasia que comprara de Pai Natal, arrumada sobre o sofá e que tencionara vestir, para a festa.

E pensou que mesmo sem celebração, iria vesti-la para surpreender o regedor, com uma garrafa de champanhe, e remirem-se mutuamente das contendas antigas.

Aproximava-se a meia-noite.

Vestiu a fantasia de Pai Natal. As ruas da cidade estavam iluminadas. Saiu de casa.

Ao aproximar-se da casa do regedor, viu por uma janela que havia luz na sala. Bem, ainda não se deitara. Bateu à porta. O regedor surgiu à janela, para ver quem o visitava.

– É pá, quem és tu, vestido dessa maneira, que apareces a esta hora, sem assistires à missa do galo, e vens interromper a construção do presépio, que é a minha companhia na consoada solitária?

– Sou o Filipe. Trabalho no Centro Geral de Computação.

– A sério?

– A sério. Também me calhou, desta vez, essa velhaca solidão. Vamos beber à nossa saúde? – perguntou Filipe.

– Se estás com essa disposição, vamos a isso.

O regedor abriu a porta e saudou-o:

– Bem-vindo, entra. Lembro-me que andámos juntos na escola. Fomos dos mais comtemplados, com vastas reguadas, por parte do professor da primária.

– É verdade eramos burros, a aprender a tabuada. Lembras-te quando já adultos, da vez em que me arrancaste um marco, de uma propriedade, e o atiraste para dentro de um poço?

– Não fui eu Filipe. Como te disse na altura, contratara um novo tratorista, pouco conhecedor das extremas da fazenda, com a manobra de voltar para um novo sulco, arrancou o marco com a charrua, e com medo de ser despedido, escondeu-o no poço.

– É verdade, coisas do diabo.

– Bebamos pois. Enterremos o mau passado. Brindemos ao bom futuro.

Ergueram as duas taças. TchimTchim

– O que me mói mesmo, – disse o regedor – foi a minha mulher, a minha deusa, ter-me deixado. Ainda sinto a falta dela.

– E, porque não arranjaste outra?

– Eu tentei meu amigo. Mas algumas diziam que não queriam artigo de refugo. E uma disse, que sofrera um ghosting, e que por causa disso, estava com a sua autoestima lesada, e que não voltaria a ter uma nova relação, sem ficar completamente esclarecida, sobre o que a levara a começar, e o que a levara a terminar.

– Será que entendeste, o que era essa coisa do ghosting? – perguntou Filipe – São termos modernos da internet, dos sites de encontros, dates.

– Deitam-se?

– Às tantas. Mas não podes asnear. Tens de ir em frente, encerrares-te numa “torre de marfim” não vai resolver.

– Sabes, amigo, que ela me fugiu, pela altura em que a tua namorada se suicidou? Um revés que nos tocou aos dois, embora diferentes no particular, que coube a cada um.

Filipe lembrou-se do amor que tivera pela namorada, amiga de infância, vizinha, o seu suicídio lhe provocara uma dor, e um receio de voltar a amar.

– Não penses mais nisso, disse o regedor, ela era simpática. Nalguns casos se poderia considerar até demasiado.

– Que dizeis regedor, brincais comigo, com uma coisa tão séria e dolorosa? – Perguntou Filipe, a usar involuntariamente o verbo no imperativo.

O regedor não respondeu, mas não foi o silêncio, foi o sorriso de escárnio, que fez Filipe num gesto repentino, partir-lhe com força a garrafa na cabeça.

O corpo caiu, o sangue começou a correr sobre a alcatifa.

Viu a pulsação. Sem pulso. Estava morto.

Não era sua intenção, obter esse resultado.

O pânico tomou conta de si. Que fazer?

Encenar talvez um acidente, um assalto que correra mal, e desaparecer o mais depressa possível, sem deixar rasto.

Olhou para o relógio a missa do galo terminara.

Atirou os objetos, que estavam em cima dos móveis pelo chão. Abriu e despejou algumas gavetas. Deu sumiço na garrafa.

Despiu a fantasia.

Respirou fundo. Limpava o suor, preparava-se para sair, quando bateram à porta.

Várias vozes diziam do lado de fora:

– Abra, a luz está acesa, queremos desejar-lhe boas festas.

 

 

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Fonte: Local do Crime, 20 de Abril de 2024

© DANIEL FALCÃO