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CONCURSO DE CONTOS POLICIAIS

UM CASO POLICIAL NO NATAL

 

O CONTRATO | Fernando A.F. Aleixo

O FANTASMA DO HOTEL INFANTE SAGRES | Bernie Leceiro

A MINHA NOITE DE NATAL | Paulo

PRAZERES DE NATAL | O Gráfico

A PRENDA DE NATAL DA MARTINHA | Paulo

AMEM-SE UNS AOS OUTROS | Inspector Moscardo

YHWH | L. Manuel F. Rodrigues

CHEGARAM OS PAIS NATAIS… | Abrótea

A MORTE DO PAI NATAL… | Paulo

SONHO DE UMA NOITE DE NATAL | Rui Mendes

UM CRIME NA NOITE DE NATAL | Paulo

UM NATAL DOS DIABOS | O Gráfico

EM FLAGRANTE – SHORT STORY | Investigador Canário

NATAL A DOIS  | Don Naype

FELIZ NATAL | Inspetor Al Vy T

A DEUSA ESCANDINAVA | F. Mateus Furtado

QUEM TIROU OS PRESENTES? | Rigor Mortis

BASEADO NUMA HISTÓRIA VERÍDICA | Detetive Jeremias

 

BASEADO NUMA HISTÓRIA VERÍDICA

Detetive Jeremias

Nem sei bem se este texto é um conto ou um relato. É um caso policial no Natal, quanto a isso não há dúvidas − mete polícia e passa-se no Natal, embora deva confessar que o chamado espírito natalício não está verdadeiramente presente. Trata-se de uma descrição de um acontecimento real, assim, talvez se possa classificar como um conto baseado numa história verídica. Por uma questão de segurança, preciso de deixar claro que nada se passou comigo, apenas obtive a informação em primeiríssima mão. É certo que os factos remontam ao final da década de sessenta do século passado, no entanto é difícil saber quando alguns crimes prescrevem, por isso, mais vale jogar pelo seguro para ficar livre de inquietações e de problemas.

Na quadra natalícia, o regedor (sim, o regedor, os presidentes de junta são uma inovação de 1977) de uma pequena freguesia lusitana decidiu, por unanimidade com ele próprio, investir num projeto inovador “nunca antes visto”. Resolveu alocar os parcos recursos financeiros à construção de um presépio em “tamanho quase real”, a instalar no adro da igreja paroquial. A verba disponibilizada conseguiu garantir a execução das figuras indispensáveis: sagrada família, anjo, vaca, burro e os três reis magos e (um único!) respetivo camelo. O presépio foi montado, como mandava a tradição, no início do advento e, de acordo com as ordens do pároco, foi instalado num recanto do largo, para não perturbar a circulação dos fiéis durante os festejos natalícios. Meia dúzia de homens, funcionários da junta, construíram cabana e outros artefactos com as traves da ferrovia descartadas depois de uma remodelação. O resultado final foi um falhanço completo − um conjunto pesado e escuro devido às traves e com figuras tão mal-amanhadas, que mais pareciam os espantalhos utilizados nos campos para afugentar os pardais. É certo que esta iniciativa não suscitou grande interesse na população, mais ocupada e preocupada com as dificuldades do dia a dia. No entanto, o meu avô, ou melhor, o avô de quem me contou este episódio, resolveu arrastar os seus nove netos para a construção do presépio. Este homem era um convicto ateu anarco-sindicalista, talvez por trabalhar na tipografia instalada na vila, e nunca fora visto na igreja, nem sequer na missa do Galo. Todos estranharam a sua presença. A miudagem delirou com as peripécias que foram acontecendo ao longo da manhã e, principalmente, com a total falta de proporcionalidade do conjunto. Por exemplo, os reis magos eram bem maiores do que o camelo, e o burro era mais pequeno do que o Menino Jesus, de todos a única figura harmoniosa. Foi este o alvo da primeira observação do avô. Disse: “Não devia estar aqui! Só vai nascer lá pró dia 24!”. Uma das netas, pespineta, aproveitando a deixa, acrescentou: “Nem o Jesus, nem os reis Magos, que chegaram em janeiro no Dia de Reis”.

E deve ter sido aqui que germinou a ideia que iria despoletar um caso policial!

Todo o crime decorreu por etapas, ao longo dos dias que faltavam para o Natal. Primeiro, desapareceu o Menino Jesus. Quem reparou, desvalorizou esta falta, talvez por ter pensado que só voltaria a integrar o presépio na noite da consoada. O segundo desaparecimento foi detetado pelo sacristão e indignou o pároco, que se encarregou de avisar de imediato o regedor: os três reis magos e o seu único camelo foram substituídos por uma grande tábua, onde se podia ler: “AINDA VIMOS A CAMINHO…”. Ao ter conhecimento desta gravíssima situação, o regedor ficou roxo e espumou de raiva. Se ele soubesse o que estava para vir, teria doseado melhor a sua ira, para a poder utilizar nos roubos que se seguiriam. Os reis magos levaram sumiço e não foram encontrados, apesar das buscas minuciosas. Já o camelo, pelo contrário, foi imediatamente visto junto ao fontanário da vila, com um ar de desprezo pacífico de quem sentia saudades do calor e da secura do deserto e não estava para transportar no lombo três homens corpulentos.

Numa tentativa vã de evitar uma humilhação, o grande erro do regedor foi ter confiado que conseguiria levar a cabo a identificação do culpado sem ajuda exterior. Começou por dar ordens aos seus caceteiros para manterem debaixo de olho o maior inimigo da terra, o avô tipógrafo. Não obteve qualquer resultado prático, porque o homem até estava retido em casa, por causa de uma entorse grave. O pior é que as figuras do presépio continuavam a desaparecer, sempre durante a noite e com regularidade, embora a vigilância fosse apertada. Chamou-se a guarda para investigar o caso, descobrir os culpados e localizar as figuras, mas o tempo ia passando e nada se alterou. O presépio “quase real” continuava apenas com o camelo, mas despojado de seres vivos visíveis a olho nu.

A primeira surpresa geral (exceto para os envolvidos no esquema) rebentou dois dias antes do Natal. A Nossa Senhora apareceu sentada à porta do posto de enfermagem, com uma saca de palha na barriga, para simular a gravidez. O São José foi encontrado na bancada de trabalho do Aurélio Carpinteiro, com o serrote de arco a tiracolo e os formões guardados na sacola. A vaca foi deixada no pasto da vizinha Lita, perto do curral das suas parentes malhadas e, por fim, o pequeno burro foi visto no mercado, atado com uma corda à banca da Maria de Deus, com o focinho bem enfiado no meio nas couves portuguesas.

Abro aqui um parêntesis para partilhar uma inexplicável ironia do destino e paradoxo das relações amorosas: a Maria de Deus era a mulher do avô ateu tipógrafo.

Chegados a este ponto, faltavam ser localizados o Menino Jesus, os reis magos e o anjo. O regedor puxou para si os louros da descoberta e deitou conta de que haveria tempo para fazer um Menino Jesus até ao Natal e três reis magos até o dia 6 de janeiro. Quanto ao anjo pensou que ninguém daria pela sua falta.

Seguiu-se uma azáfama para consertar as figuras e repor tudo no devido lugar em tempo útil. No dia 24 de dezembro, a noite da Missa do Galo, estava tudo pronto e equipado, mas nem as lâmpadas instaladas à pressa, conseguiam apagar o aspeto triste do presépio do regedor. Dois guardas novatos, vindos de fora, fiscalizavam o presépio para evitar novas fugas indesejadas. Aguardava-se a colocação de um novo Menino Jesus, na velha manjedoura, uma cerimónia agendada para o final da Missa, de acordo com a tradição religiosa.

A segunda surpresa geral (exceto para os envolvidos no esquema, repito) estoirou no final da missa. O regedor e o padre disputavam o transporte do novo Menino Jesus, quando deram de caras com o Antigo Menino Jesus envolvido numa mantinha de lã e já deitadinho no local que lhe competia. O Anjo, pairava sobre a cabana e empunhava uma faixa azul que dizia em letras douradas: “VIVA A LIBERDADE!”

A Noite de Paz acabou com uma discussão violenta seguida de confrontos físicos. Começou com acusação de culpa do regedor ao padre, por ter relegado o presépio para um canto do adro da igreja. E esse foi o rastilho que se alastrou aos demais fiéis. No final, desesperado, desencantado e com um olho negro, o regedor desistiu do projeto e o prior foi atrás. Os guardas só foram encontrados no dia seguinte, perto da tasca do Almerindo e garantiram terem sido também raptados. Tinham jurado um ao outro, nunca na vida, contarem a quem quer que fosse, nem sob ameaça de tortura dos Távoras, que um velho coxo com bigode de pai natal sem barba e nove miúdos escanzelados e esquivos os tinham levado a provar uma aguardente de estalo, que os livrara do gelo da noite da consoada. Os reis magos antigos regressaram no dia de Reis pelos seus próprios meios e juntaram-se ao camelo que os aguardava há dias.

Esta história nunca tinha sido divulgada com o rigor merecido.

Uma vez reposta a (quase) verdade dos factos, resta-me terminar dizendo que ainda hoje o sentimento é unânime para aqueles que viveram os acontecimentos, em especial os nove irmãos/primos − nunca se viveu um Natal tão emocionante e prazenteiro como o do Presépio Real!

 

Fontes:

Blogue Local do Crime, 20 de Dezembro de 2024

Secção O Desafio dos Enigmas [199], …

 

© DANIEL FALCÃO